6.26.2011

Prazo de Validade

Desde que eu me lembro a vida passa a corer
Mais que tudo isso é uma corrida p'ra morrer
Diz-me tu se a contagem do meu aniversário
São os anos que já fiz ou os que me faltam fazer
Eu sei que é difícil viveres só no presente
Tens de aprender a deixar ir o que temes perder
Nada é realmente teu nem a vida te pertence
Até a alma neste corpo é um estado latente
Lamentares-te com tudo é típico do mundo
Desculpares-te com a idade é puro teu refúgio
O que interessa é o que fazes ao longo do tempo
Mais vale 30 bem passados do que 80 anos de vento
Antes dos 18 não podia sequer pegar no carro
Vê lá se isso me impediu de pôr nos lábios um cigarro
Aos 50 ouvi dizer que chega a tal da menopausa
Já te disse que no sexo não faço não faço pausa
Eu não sou um iogurte com prazo de validade
Nem tão pouco uma foto num cartão d’identidade
Não me digas que vou tarde tu não sabes pr’onde vou
Sei que se não for agora a oportunidade voou
Do modo como falas fala um atum enlatado
Vives a vida preso a regras para mim estás entalado
Se te conto dos meus planos dizes p’ra eu ter cuidado
Não subas assim tão alto tu já foste magoado
Mas eu corro e vivo a 100 porque morrer é estar parado
Não me chames de falhado essa frase dá-me asco
Para mim já falhou quem nunca sequer tentou
Sou um cavalo alado eu não me fico neste pasto
Para ti é sempre tarde mas depois não mexes palha
Dizes que vivo pelo risco diz antes que eu arrisco
És uma ovelha no rebanho mas recusas-te a ver
Fiz só ontem 30 anos diz-me lá estou a morrer?
Na vida não faço pausa já disse não faço pausa
Ouviste não faço pausa repito não faço pausa
Palavra não faço pausa amigo não faço pausa
Esquece não faço pausa não faço não faço pausa

Game Over

Os dias imperfeitos agora são os meus eleitos
A tua perfeição não era mais q’um gesto feito
Devia ter percebido ninguém é tão perfeito
Demorou e enrolou mas explodiu o defeito
Levavas-me prá cama e eu ficava dormente
Mas parei de sonhar quero um bom presente
Quero um homem completo que me ame por dentro
O jogo meu querido nunca foi suficiente
Por enquanto há um vazio ao meu lado no leito
É melhor do que viver com uma faca no peito
Eu ainda acredito num príncipe encantado mas
Até agora só passaram uns sapos molhados
Diz-me lá se o meu pé não dava pró teu sapato
Estou cansada de tentar sempre o mesmo par errado
És um puto grande puto que só pensa no jogo
Veste e despe o avatar mas não apaga o meu fogo
Colocaste-me num bote em pleno meio-dia
Eu senti-me abandonada totalmente sozinha
Com os meus olhos nos teus olhos eu perdi-me de vista
E o vento que senti foi a minha companhia
A tua voz não era mais do que um eco da minha
E o pensamento estava cheio de erva daninha
Virtual irreal e eu bem longe da mira
Fizeste da nossa vida uma grande mentira
Não chores não telefones vou dizer-te que não
agora não adianta passares a tua mão
é tarde o mal está feito e o leite derramou
não chegaste a tempo e a galinha já queimou
Decidi dizer adeus nem sequer ‘tás na estante
Tinha de acabar com isto estava a ser atrofiante
Já não era estimulante era pura perda de tempo
e a dor já era grande como uma grande dor de dente
Não sabes tu que a vida não é um Halo qualquer
Deixa o poker e os tiros e faz feliz a mulher
Não ouviste o que te disse nem o que te pedia
Perdeste este jogo e não tens mais uma vida

Schnell

Na Áustria o Natal passa rápido é schnell
Dá-se só uma prenda mas atenção é Chanel
O ritmo de vida é acelerado apressado
Mas há sempre tempo livre para o namorado
Se precisas de gelado vais ao supermercado
Mas cuidado sê rápido tem o Geld p’parado
Se te atrasas a meter as cebolas no saco
Coragem vais passar a viver sem um braço
Depender da tua Mãe não é vergonha é um estado
Temporário transitório ficaste sem ordenado
É verdade o teu sorriso não te paga a renda
E os teus anos já passaram não vais ter nenhuma prenda
Será que és culpado ou só mais um sacrificado?
A coisa estará feia ou será só para o teu lado?
Estás perdido no caminho não encontras o sentido
Quem te dera ter nascido sem o futuro de mendigo
Um dia bom para o Austríaco tem 1 grau positivo
O Sol vem ao meio-dia para eles assim é bonito
Esquece a vida de mendigo só há 3 dias de Verão
Não há um sem-abrigo ainda com essa ilusão
O quebab é o que te vale mas não enche um português
Habituado ao Bacalhau à Brás da dona Inês
Sem emprego sem ninguém bates à porta de quem?
Sempre podes corer para o colo da tua Mãe
Mais um futuro excitante que acabou nesse instante
Tens de ter paciência chorar é desgastante
É de certo um imprevisto não estavas à espera disto
Mas a língua não se empresta e Portugal é o que te resta
Faz as malas emigrante tu não falas fluente
Neste mundo civilizado quem te dá a mão mente
Posso até estar a ser um bocado demente
Se calhar só tive azar com toda aquela gente

6.12.2011

Sou e não sou

Sou a cama feita de fresco
Com manchas antigas de sangue
Sou aquela boneca com roupas bonitas
Com um vazio no peito
onde cabem as pilhas

5.30.2011

Os bons Pais

Os bons Pais são aqueles que te amam antes mesmo de nasceres. São os que te vão procurar quando não consegues encontrar o caminho para casa. São os que não conseguem dormir quando estás triste ou doente. Os que se preocupam quando não comes legumes suficientes. Ou quando não arranjas emprego. São os que te dão conselhos quando a namorada te deixa. Mas são também aqueles que te tiram os óculos se usas daqueles cor-de-rosa. Os bons Pais são aqueles que acordam à noite para te darem água. São aqueles que te perguntam se estás bem e preocupam-se em ouvir a resposta. São os que te dão dinheiro para comprar cromos estúpidos para encheres cadernetas estúpidas. E aqueles que não te dão dinheiro se sabem que vais o gastar todo em guloseimas. São aqueles que viram os dias e as noites a trabalhar para que não te falte nada. São aqueles que fazem sacrifícios com um sorriso para que nunca percebas que é um sacrifício. Até porque eles não o sentem como tal. Os bons Pais são aqueles que dormem na sala anos e anos para que os filhos tenham finalmente um quarto. São os que voltam a dormir na sala para que te sintas bem recebido. São os que te apoiam mesmo quando a tua decisão é ir para longe deles. Porque só pensam no que é melhor para ti. Os bons Pais são aqueles que perdem a liberdade demasiado cedo mas nunca culpam os filhos disso. Os bons Pais são aqueles que se orgulham de ti quando tens bons resultados na escola e quando não tens bons resultados na escola. São aqueles que te perdoam mesmo quando és injusto e egoísta. Mas os bons Pais são também aqueles que mais sofrem. Em silêncio.

12.23.2010

Bom Natal

O Natal para mim é a minha mãe, o meu pai, a minha avó, os meus irmãos Bruno e Pedro e eu: juntos. Nunca foram os embrulhos debaixo da árvore, mas quem os embrulhou; nunca foi a árvore verde num vaso de terra num canto da sala, mas o meu pai que ia connosco comprá-la, depois de longos minutos a escolhermos a mais bonita; nunca foram as estrelas e os sinos e os embrulhinhos pequeninos que enfeitavam a árvore, mas a minha mãe que se esticava para chegar aos ramos mais altos, ou o meu pai que me punha às cavalitas para ser eu a prender a estrela cadente bem lá no alto. O Natal para mim nunca foi o presépio debaixo da árvore, mas a cola, e o musgo e o barro e os tecidos e o corte e a costura nas tardes dos dias que eu, a minha avó e o Pedro passávamos a construi-lo; nunca foram as músicas natalícias mas a nossa casa sempre cheia de música que o meu pai colocava para tocar na aparelhagem da sala e que me tirava da cama logo pela manhã, sem maus feitios. O Natal para mim nunca foram as comidas, o bacalhau e o peru, o bolo rei e as filhoses, a mousse de chocolate ou o quente e frio; mas a minha mãe ao fogão e a minha avó a amassar o pão, os meus irmãos a espetarem os dedos gulosos na mousse e a levarem com o não de quem impunha a razão. O Natal para mim nunca foram os muitos presentes que se ganhavam mas a cerimónia lenta de os desembrulhar interrompida volta e meia com beijos e gritos de abre, abre, abre! Mas a vida corre, as crianças crescem e as coisas mudam. E neste Natal, pela primeira vez, não nos vamos reunir todos; os meus irmãos vão passá-lo nas suas casas, com os seus filhos, e também eles iniciam esta tradição que para nós não é mais do que ter a família reunida. Este Natal não vai ser a minha mãe, o meu pai, a minha avó, os meus irmãos e eu. Mas está tudo bem. Apesar de não poder passar com eles, eu sei que eles sabem que são dos maiores presentes da minha vida.

6.26.2010

Ó Sr. Zé


Fogos em Portugal já consumiram o equivalente a 68 mil campos de futebol. Esta é uma das manchetes de um jornal que sabe muito bem quem é o seu leitor: o Sr. Zé, adepto de futebol. E os anos vão passando e o Sr. Zé preocupa-se cada vez mais com o futebol e cada vez menos com o que se passa no país. Ou pelo menos, assim parece. Mas também, se o jornalista tivesse escrito que em Portugal já arderam mais de 68.000 hectares, o comum leitor não teria conseguido percepcionar o prejuízo. Isto, em parte porque para o Sr. Zé se torna difícil imaginar uma número com tantos algarismos (o seu ordenado só tem dois zeros). E sem saber quanto de Portugal teria ardido, insatisfeito, provavelmente teria passado para o artigo da professora que faz um bico no bordel da esquina. Para dizer a triste verdade, muito provavelmente terá sido esta notícia que terá feito o Sr. Zé comprar o jornal. E o Sr. Zé não é mais do que o Zé Povinho já nosso conhecido, de camisa branca e chapéu preto, tal como nos foi apresentado pela mão de Bordalo Pinheiro, em 1875, na Lanterna Mágica, onde o nosso Sr. Zé aparecia, ajoelhado pela carga dos impostos e ignorante das grandes questões do país. Pois é, o problema dos impostos continua, e nós continuamos ignorantemente ajoelhados, mas essa caricatura que se tornou identificativa do nosso povo agora carrega um cachecol ao pescoço e há cada vez mais várias versões dele. Só para mencionar algumas, temos o Sr. Zé Povinho Benfiquista, o Sr. Zé Povinho adepto do Porto, e o Sr. Zé Povinho do Sporting. E chamei-o de Sr. Zé Povinho só para lhe dar alguma importância. Mas vou voltar ao problema dos fogos em Portugal, porque era sobre isso que eu queria escrever. Os fogos de Agosto, qual peça que passa sempre no mesmo teatro Tuga, com os mesmos protagonistas do ano anterior, e que invariavelmente nos apresenta o mesmo final. Todos os anos se fala da mesma falta de meios dos bombeiros, do facto de ninguém se ter lembrado de limpar as florestas, dos ventos que mudaram e pioraram a situação, do segundo helicóptero que não chegou a tempo, e apesar de ser tudo tão previsível, os incêndios de Agosto continuam a abrir os telejornais e ser capas de jornal. Mas agora o Sr. Zé Povinho coloca orgulhosamente o cachecol ao pescoço, e como o próprio Bordalo Pinheiro o definiu, olha para um lado e para o outro e fica como sempre, na mesma.

2.06.2010

Espere um momento

Espere um momento, encha-me o copo de Coca-Cola e deixe-me tirar a rodela de limão e colocá-la a seguir na sua bandeja que não tem. Sabe como é, tenho 23 anos, dois filhos de colo, e não estou habituada a voar assim. Se puder, diga também às mulheres e crianças que se amontoam neste voo sobrelotado, que deixem de chorar e de gritar, que não estou acostumada a coisas destas. Traga também uns brinquedos para os meus filhos se entreterem. Não lhes consigo explicar porque é que tivemos de partir tão depressa, como se tivéssemos feito algo de muito errado, e sem o pai deles. Já que é tão amável, podia trazer-me uma almofada para a minha avó descansar a cabeça? Ela tem 90 anos e já lhe falta uma perna. E se não for pedir muito, diga ao piloto para voltar para Angola. Sim, porque se eu soubesse que ontem à tarde seria a última vez que eu iria ver o céu cor-de-rosa do Lobito ter-me-ia demorado ainda mais a observar a zona dos mangais e das salinas da cidade verde do Lobito. Tinha ouvido com mais atenção o som das chaminés dos navios que atracavam no porto e o sol das asas dos flamingos, que ecoavam como se sacudissem o pó da cidade com carinho. Ou tinha passado noites e noites acordada só para ouvir o barulho das vassouras, cadenciado, quando as ruas eram varridas e lavadas. Se eu soubesse que tinha de partir, tinha ido mais uma vez ao Hotel Maiombe, para pedir a Coca-Cola com gelo que a senhora agora não tem para me oferecer, porque sei, sim entendo que este voo é de refugiados, de portugueses de segunda, e portugueses de segunda não têm sede nem podem ter vontade de beber um refrigerante. Entendo. Se eu soubesse que hoje seria a última vez que ia pisar na minha Terra, tinha voltado a andar descalça pela cidade ou apanhado mais um Bulama para ir de casa até à praia. Se eu desconfiasse, tinha dançado ao fim-de-semana com o batuque da senzalas em Cabinda. E apreciado mais longamente os poços de petróleo distribuídos pelo alto mar, qual archotes espalhados. Pequenas fogueiras ao longe, que decoravam e iluminavam essa massa de água no escuro. Espere um momento, encha-me o copo de Coca-Cola e deixe-me tirar a rodela de limão e colocá-la a seguir na sua bandeja que não tem. E quando eu levar à boca o copo de água, que me saiba a Coca-Cola.

1.31.2010

As minhas bonecas novas do orfanato

Tenho tido dores de cabeça toda a minha vida, ou melhor, desde os 7 anos. Desde aquele terrível acidente em que o comboio foi contra o nosso buggy e eu perdi a minha mãe. Foi num dia frio de Novembro. Eu tinha duas irmãs mais pequenas e vivíamos as quatro num apartamento pequeno do centro de Viena. O meu pai suicidou-se com veneno para matar ratos, durante o nosso chá das cinco. Eu adorava o chá das cinco. Eu era a dona da casa e sentava-me confortavelmente na poltrona. Perto de mim, o carrinho de chá. O meu pai ensinou-me a baixar o mindinho enquanto levava a chávena aos meus lábios repenicados. E eu pensava, não posso sorver nem ter o mindinho levantado. Não posso sorver nem ter o mindinho levantado. No carrinho tínhamos tudo o que precisávamos, o bule com chá quente, verde – o preferido do meu pai – um jarro com água aquecida, creme de leite fino, o açucareiro, um preto de rodelas de limão com um garfinho repousado, duas xícaras, colheres e guardanapos. No dia do último chá, o meu pai tinha-me trazido um pequeno jarro com rosas para dar um toque elegante. O chá das cinco acabou às cinco depois das cinco, quando o meu pai me disse que se estava a sentir mal. Tinha náuseas e passou a maior parte do nosso chá na casa de banho. Até que deve ter ligado para o hospital porque vieram buscá-lo e levaram-no para as emergências. Mas foi tarde demais. Os médicos suspeitaram de envenenamento por causa da rapidez com que os sintomas se manifestaram. Foi assim que eu perdi o meu pai, dois anos antes de perder a minha mãe. O próximo chá das cinco aconteceu com as minhas bonecas no orfanato, para onde eu e as minhas irmãs fomos levadas. Realmente é uma ironia o nome, porque não havia muita luz no orfanato. Estava sobreocupado e eu dividia a cama com uma outra rapariga da minha idade. Ninguém tinha brinquedos, e só havia um cobertor por cama. Eu e a Luísa cortámos com uma tesoura o nosso cobertor porque frequentemente uma de nós dormia descoberta e acordava com frio a meio da noite. Não éramos nós que éramos gordas. Era o cobertor que era insuficiente. Sempre me disseram que trariam as minhas bonecas de casa para mim, mas eu nunca as recebi. Estivemos no orfanato 4 anos. Nunca fomos adoptadas, talvez porque éramos muito velhas para isso, e os pais que apareciam lá queriam todos bebés. Os bebés choram, não dormem de noite, ficam mais vezes doentes, obrigam as mães a mudarem-lhes as fraldas constantemente, são totalmente dependentes deles e só dão trabalhos. Nunca percebi essa obsessão em adoptar bebés. Eu já tinha idade suficiente para cuidar de mim, lavava muito bem os dentes e ajudava as minhas irmãzinhas a tomarem banho, a vestirem-se, a comer, e nunca criava problemas com as outras crianças. Eu era uma criança perfeita, porque é que não me adoptavam? Só queria que aquelas criaturas indefesas desaparecessem. Na manhã do dia de Natal de 1990 acordei com os gritos histéricos das outras crianças. Em duas noites desapareceram 2 bebés. Eu tinha um esconderijo. Construí sozinha uma casa na árvore, dentro do campo do orfanato, claro. E era lá que eu tomava o chá das cinco com as novas bonecas que o orfanato me tinham dado. Um psicólogo todos os meses visitava o orfanato da Luz e nós éramos obrigadas a falar com ele. Eu e as minhas irmãs, porque tínhamos perdido os dois pais de maneira traumática. Usavam frequentemente essa palavra, que só mais tarde percebi o que significava. Abri um livro da biblioteca do orfanato que continha 20 livros, um dicionário e li que algo traumático estava relacionado a um trauma, e um trauma era um ferimento, e também um choque emocional violento que modifica a personalidade de um sujeito podendo desencadear problemas psíquicos. Fiquei na mesma, tinha 8 anos e não achava que estava diferente de antes. Só mais sozinha. No dia em que a minha mãe morreu esmagada pelo carro esmagado pelo comboio, ela tinha me ido buscar à escola mais cedo porque a reitoria estava farta dos meus esconderijos. Nunca perceberam a minha brincadeira. Eu escondia-me sempre no mesmo lugar, dentro de um armário da sala dos professores. Eles diziam que eu era desordeira e problemática. E perguntaram à minha mãe se eu tinha passado por alguma situação traumática. Foi a primeira vez que ouvi essa palavra mas dela só retive o final. Ática. A minha mãe contou-lhes do suicídio do meu pai e aparentemente essa foi a situação ática escolhida para justificar os meus esconderijos. Mas a minha mãe não me censurava. Ela percebia. Não me dizia uma palavra sobre isso. Tenho saudades dela. E as minhas bonecas estão a apodrecer.

Lembras-te?

Ficaram os dois com os lábios dormentes de tanto se beijarem.
Deliciaram-se com sardinhas assadas num restaurante minúsculo de beira de estrada.
Gritaram na noite, para a lua: Amo-te, amo-te mais, amo-te muito mais.
Ele passou os dedos na cicatriz dela, na barriga, e disse-lhe: Assim, ainda és mais linda.
Depois da sauna, nadaram nus no lago.
A primeira vez que os cabelos compridos dela lhe foram parar à boca por causa do vento, e depois se beijaram.
Ela disse-lhe: Não acredito em amor à primeira vista. Ele passou por ela mais três vezes seguidas e voltou a perguntar: E agora?
Gritaram na casa nova vazia, só para se ouvirem juntos no eco.
A primeira dor de parto, do primeiro filho.
A primeira vez deles na praia. E agora, o mar fá-los sempre sorrir por nada.
A primeira vez que ele lhe comprou um presente, e tiveram de devolver porque não lhe servia.
Foram ao cinema e não se lembram do filme que viram.
Ela foi visitá-lo à cidade onde ele vivia e quando chegou ele não a deixou sair do carro, porque não parava de a beijar.
A electricidade faltou na casa dela e eles foram para o carro ouvir música e falar de filhos, quando ainda nem eram casados.
Ele pediu-a em casamento e ela não disse nada. Ele leu-a entre silêncios e depois amou-a entre palavras.
Ele estragou a surpresa e a caminho de um concerto de música, ainda dentro do carro, disse-lhe que já tinha comprado o anel. Ela sorriu.
A primeira vez que ele pousou a mão no cabelo dela, e brincou com ele. E o Sol nascia.
A primeira discussão sobre quem devia ter guardado a manteiga, e como se riram depois.
No fim das férias de Verão, já com o dinheiro contado, jantaram num restaurante a caminho de casa, e qual dama e vagabundo, partilharam um prato de esparguete, até ao último fio de massa.

1.04.2010

Às vezes lembro-me de ti a sorrir.

Só de me lembrar disso vale a pena ter nascido.

Quando me dás a mão

guardas na minha todos os sonhos quem nem eu sabia que sonhava.

Amar

é esquecer continuamente que se é um só.

12.03.2009

Abertura fácil

Agora as garrafas de vinho também com são de abertura rápida. Não são só as garrafas de cerveja. Tudo é abertura rápida. De consumo imediato. Momentaneo. Não sei se sou só eu, mas o vinho está no meu imaginário como um momento lento, de apreciação, romantismo até. Mas quem é que pode ser romântico se não perder algum tempo a abrir uma garrafa de vinho? Já nao basta a invasão na vida dos outros e na nossa, que com o facebook se faz num abrir e fechar de página? Já não basta o acesso rápido a todas as coisas na internet? Acabaram-se os momentos românticos, o tempo da descoberta. Agora sabe-se tudo no momento. E já ninguém se conhece devagar. Basta ir ao facebook ou fazer uma procura no google, e sabe-se praticamente a vida toda dessa pessoa. Os miúdos de 10 anos já não querem aprender a tocar guitarra, nem treinam horas e horas a fio. Aos 16 anos já ninguém se junta com os amigos nem tem bandas de garagem. Agora são todos estrelas de rock na Xbox e fazem todos tours mundiais com os amigos virtuais. Para quê perder horas por semana a aprender bateria quando se pode ter mil fãs novos todos os dias no mundo virtual? É o mundo do resultado fácil, da abertura rápida, do final da linha. Já ninguém quer saber do caminho. Do antes, agora salta-se para o depois. Tenho saudades do durante. Já ninguém telefona aos amigos, agora mandam e-mails e em alguns casos não assim tão extremos deixam-se posts no twitter e no facebook. Já ninguém pergunta ao pai ou ao amigo onde fica este ou aquele restaurante. Agora pergunta-se ao google. Por favor, tragam-me de volta uma garrafa de vinho com abertura lenta.

11.03.2009

Simpatia portuguesa

Ontem sentei-me numa mesa para comer uma picanha. Tinha chegado finalmente a hora de almoço, a minha segunda parte favorita do dia. A primeira é depois do dia de trabalho. Estava a dar um jogo qualquer de futebol e 20 rapazes corriam de um lado para o outro a disputar uma pequena bola de xadrez. Os talheres faziam barulho e volta e meia arrepiavam-me. Há pessoas que em vez de cortarem a carne, preferem escrever nos pratos com as facas. Arrepio-me tanto que chega a doer. O empregado veio e perguntou-me se eu já sabia o que ia pedir. Eu disse que queria a picanha. Com o que, pergunta-me ele. E eu, Com o que? Com tudo a que tenho direito, disse com um sorriso e os olhos a pestanejar exageradamente. Ele sorriu e foi-se embora. Para a cozinha, julguei. Eu abri o livro O Menino Alemão na página 33 e continuei a ler. Quando estava na 34, o mesmo empregado volta e pergunta-me se eu já sabia o que queria pedir. E eu esbugalhei os olhos e repeti, especificando, Picanha, com linguiça, arroz, banana frita e feijão preto. Acrescentei Por favor e o empregado partiu para a cozinha. A picanha chegou e eu ataquei-a. A meio da matança, o empregado voltou a aparecer para saber se estava tudo bem e eu disse, Está tudo óptimo, obrigada. Cerca de 2 ou 3 minutos, apareceu de novo e voltou a perguntar. E eu voltei a repetir, já com o sorriso a esmorecer. Procurei com os olhos a parte do livro onde eu ia, e li de novo a frase. Para a próxima vez, tencionava lamber os lábios, fechar a mão com os dedos juntinhos e levá-los à boca e soltar um beijo com um Mamma mia, apesar do restaurante não ser italiano, só para ver se o simpático empregado me deixava em paz com o meu livro. Mas não foi preciso. Não me interrompeu mais. Lá fora, o céu chorava, porque o Verão tinha acabado, e eu terminava a refeição já a blasfemar o relógio que me faria voltar ao trabalho. O empregado veio perguntar-me se eu queria sobremesa e eu disse Não, obrigada, só a conta. E depois um minuto ou isso depois voltou a perguntar-me se eu quereria mais alguma coisa e eu repeti, Só a conta. Achei muito estranho com tantos clientes o restaurante só ter dois empregados: uma rapariga gordinha com ar de cozinheira, e este rapaz tão aborrecidamente atencioso. Como é que podem eles sozinhos dar conta do recado? Ele trouxe-me a conta e eu paguei. Depois esperei pacientemente o troco. E foi aí que percebi tudo, quando vi os 3 empregados ao mesmo tempo na sala. Afinal, o empregado não era demasiado atencioso nem sofria de amnésia. Tinha só um irmão gémeo.

11.02.2009

Sometimes

Screams are silent. And the silence can seem so loud.

10.22.2009

Devo ser muito inteligente

Porque hoje não estou a entender uma palavra do que digo.

10.13.2009

Os meus dias

Eram como os dias de um relógio de parede.

10.08.2009

Tenho 27 anos e daqui a 45 dias lá terei eu 28.


Há uns meses largos – e ainda estou a perceber o que é um mês estreito – quando eu ainda morava em Viena de Áustria, resolvi inscrever-me num curso de alemão. Disseram-me que o melhor era fazer na universidade de Viena e eu fui lá inscrever-me. Deram-me a morada da sala de aula e na semana seguinte estava lá. Contente, porque iria conhecer pessoas novas e quem sabe fazer amigos. Esperava encontrar até cacifos. Algo que estava no meu imaginário antes de ter entrado para a Católica e que se tornou uma grande decepção. Na Católica não havia cacifos e também não havia rapazes giros que me pudessem apanhar o dossier quando eu propositadamente o deixasse cair. Então tive boas notas. Enfim, disseram-me que as aulas seriam dadas no Campus da universidade. Pouco mais de 15 dias se passaram e eu queixei-me a uma amiga de que afinal o curso nao estava a ser dado na universidade como me tinham dito, mas sim numa escola qualquer, porque o pessoal era todo muito novo. E aí ela relembrou-me que as pessoas que vão à universidade são realmente muito novas. E aí eu puxei pela memória, e sim, entrei com 17 anos na universidade. E então lembrei-me que já passaram 10. Tudo começou a fazer sentido, e não são eles que são muito novos. Escusado será dizer que não fiz muitos amigos. A maioria só queria falar de rapazes e pintar as unhas, ou ouvir Rammstein e fumar ganzas.

10.07.2009

Vou para cima


Hoje li um artigo sobre botões nos elevadores. Estava muito bem escrito. Falava do quão negligenciados estavam normalmente os botões que accionam as portas para abrir, e o quão riscados e abusados estavam os que fecham as portas antes do tempo. A moral é facilmente deduzida. Mas porque é que alguns de nós nos isolamos e pensamos que o melhor é fazermos a viagem sozinhos? Pouco mais de uma hora depois de ter lido o artigo, tive a resposta. Separei-me há 2 meses, e ainda hoje existem pessoas que nem tendo os direitos ou deveres de amigos, continuam a tentar invadir a minha vida. Com frases desajeitadas, insensíveis, e intrometidas. Eu sou daquelas pessoas que atira a perna ou o braço contra a vontade das portas para as segurar abertas para quem queira entrar. Faço isso nos elevadores, e faço isso na minha vida. Dia sim dia não arrependo-me.

Gosto de nascer várias vezes

7.09.2009

Wie Thomas Bernhard: Love-hate for Austria

Já vos falei da mania deles de apresentarem a pergunta antes de a fazerem. Eles dizem: Eine Frage, e blá blá blá. Pois, então agora falo-vos da mania de dizerem Achso! e que não, não são eles a espirrar. Significa: Ahhhhh, já percebo. Ora, eles dizem isso muitas vezes porque é complicado para cada um dos austríacos perceber o que o outro está a dizer. Isto porque para além de ninguém saber ao certo falar alemão, eles colocam os verbos no fim da frase. E as frases podem ser do tamanho de umas dez linhas. Quando o austríaco diz o verbo de acção que revela finalmente o que é ele foi fazer, o outro austríaco não tem outra resposta senão um Achso! (santinho) Pois, agora percebo, seria o que vocês portugueses diriam no fim da minha conversa toda se eu vos dissesse: Eu à cave da nossa casa com o meu namorado uns quantos tomates e uma Coca-Cola ontem ao fim do dia já escuro muito depressa porque amigos em casa tínhamos buscar fomos. O Achso viria naturalmente, e até com um certo alívio. Ninguém prendeu ninguém na cave, a cave também não foi o lugar onde a magia acontece, e finalmente entenderam que só lá fomos buscar uns inocentes tomates e uma Coca-Cola. Ufa. Mas há um outro perigo. Quando finalmente eles sabem o que é que se fez na cave, há grandes probabilidades de já não se lembrarem quem é que lá foi. E a minha frase é uma brincadeira de bebé, comparada com as deles.
Mas há outras coisas estranhas, por exemplo, aqui, a rapariga não é do sexo feminino ou sequer masculino. Simplesmente, não tem sexo. É neutra: das Mädchen. Mas a cenoura (die Karotte) tem já todo o direito a ser do sexo feminino. Penso que isso seja porque a cenoura é rica em betacaroteno, que é importante para a pele e para as mucosas. Outra coisa estranha é a ligação entre as mulheres e as raparigas sem sexo com a bicicleta. Para começar, todas têm uma bicicleta. Uma mulher aqui na Áustria sem bicicleta não é uma mulher. Quando eu não tinha bicicleta elas nem respondiam aos meus bons dias. E não era por serem xenófobas. E por bicicleta entenda-se a bicicleta com cadeado, cestinha, capa de selim, corrente, bomba de ar, capacete, cotoveleira, joelheira, e outras nhanhanheiras. Mas até aí tudo bem, o problema pelo menos para mim passa por andarem de bicicleta com mini-mini-mini-mini-saias, com a perna para cima, perna para baixo, perna para cima, para baixo, calcinha com renda, perna para cima, perna para baixo, cuecas da avó, para cima, para baixo, cima, baixo. Conto umas cinco calcinhas por dia, isto porque a maior parte delas usa. Mas há coisas piores. O Danúbio, o Danúbio Azul que deu o nome à valsa do Strauss, e inspirou tantos outros poetas, fá-los-ia regurgitar os últimos jantares em vida. Nos seus bons tempos, ao longo dos 110 km, da nascente ao poente, o rio recebia mais de vinte pequenos mas cheios afluentes. Hoje são fios de água e condutores de esgoto e outros detritos. Até os pobres batráquios desapareceram. Quando o Strauss passeava pelas margens do Danúbio em câmara lenta, porque na altura era tudo mais devagar, era comum passar-se por famílias inteiras em piqueniques e ver-se os putos a aprender a nadar nas águas então cristalinas. Agora ainda se vêem muitas pessoas, mas a apanhar sol na relva e uns poucos malucos como eu dentro do rio lamacento. Mas ou vou lá para dentro envenenar-me ou a opção é esticar-me na relva a apanhar um sol enevoado ao lado de pessoas que não conhecem o hábito de usar um biquini ou calções de banho. Meus amigos, por favor: Enfiem-me num avião de volta para Lisboa, ou metam-me numa cave!

1.13.2009

Na Áustria, a vida é diferente

Na Áustria o Natal é mais rápido. Janta-se em 5 minutos porque as salsichas comem-se depressa e ninguém tira os olhos do prato. Num minuto trocam-se as prendas porque só há uma prenda para a cada um. E como também não trocam beijos não se perde tempo com isso. O ritmo de vida é tão acelerado que qualquer austríaca que engravide, expulsa o filho depois do primeiro semestre.
Na Áustria, os bebés não são irrequietos. Não se conseguem mexer com tanta roupa. Também não choram, sabem o quão desconfortável é ter a cair dos olhos estalactites.
Na Áustria, as pessoas levam multa se não atravessarem na passadeira e andam mais depressa porque devagar correm o risco de congelar. Também não sorriem na rua para não resfriarem as gengivas. Em casa, se se riem, o riso é prontamente auto-interrompido e justificam-se aos familiares ou amigos. Nos supermercados, as caixas parecem linhas de montagem de uma fábrica. Se demorarmos muito a guardar as compras, ficamos sem os dedos.
Na Áustria, os deficientes podem andar sozinhos em todo o lado porque há acessos fantásticos para eles sejam totalmente independentes. Se não fosse assim não sairiam de casa porque não teriam quem os ajudasse. Todas as passadeiras de peões foram pensadas também para os cegos. Existe um som que orienta o cego para atravessar a passadeira. Mas o som está lá quer passem carros quer a estrada esteja vazia. Talvez seja por isso que nunca vi um cego na rua. Já foram mortos pelo sistema.
Na Áustria praticamente não há desemprego nem sem-abrigo. Os que dormem nos bancos de jardim morrem de frio. E também não há pedintes por aqui. Como pedir é crime, são imediatamente levados pela polícia. Talvez seja por isso que ninguém pede desculpa ou com licença. Se algum estrangeiro está a impedir o caminho, o austríaco tenta ultrapassar o obstáculo em silêncio ou espera que o estrangeiro acabe de atar o sapato. Não falam qualquer palavra mas depois emitem um som de desagrado quando o caminho está finalmente livre. Na Áustria, antes de qualquer pergunta a um desconhecido eles avisam que vão faze-la. Dizem: Uma pergunta. E continuam. Ainda estou um dia para responder: Uma resposta. Ou se a pergunta me surpreender, digo: Uma exclamação.
Mas também, na Áustria não é de bom tom perguntar que gritos foram aqueles ou porque é que a filha do fulano nunca mais foi vista. Talvez seja por isso que na Áustria seja possível guardar-se filhos na cave durante anos sem que ninguém note.
Para os austríacos, um dia divertido é passá-lo em filas para fazer snowboard e depois em filas para comprar salsichas. Para eles, um com 2 graus positivos e 5 minutos de sol que não aquece ao meio-dia é um dia bonito. Se não fosse assim, não havia dias bonitos na Áustria. Mas o que falta em calor, existe em organização. Na Áustria todas as regras são cumpridas e quando um estrangeiro não as completa até o ser-se atropelado por uma bicicleta se torna possível. Quem quiser viver a experiência, basta que em vez de andar nas faixas reservadas para os peões, ande nas faixas para bicicleta. Por norma ouve-se uma campainha que avisa a aproximação do ciclista e depois, o embate. Eles não param porque estão dentro da lei.
Na Áustria, a qualidade de vida é sem dúvida superior e está a léguas de países como o Brasil. Até os ladrões são diferentes. Os ladrões brasileiros roubam porque têm fome, os austríacos roubam de barriga cheia. Ladrões? Mas o que estou para aqui a dizer! Não há roubos na Áustria, há objectos perdidos.

10.19.2008

You killed my heart


And when I go to the bathroom to dry my stubborn tears,
I notice that my panties are wet.
I don't know if it were your tender kisses
When you begged me to stay,
Or if it is just me...
Crying from every part of my body.

9.10.2008

O objectivo

Sermos com os outros o que somos sozinhos.

9.02.2008

O meu nome é Sofia e moro com os meus pais na Pontinha.


A minha casa da Pontinha cheira à minha mãe. Cheira a bolo de chocolate feito pela Olga. Cheira a jogos de xadrez com o meu pai, que desconfio que ou me deixa ganhar ou joga muito, assustadoramente mal.
A minha casa da Pontinha sabe às manhãs de sábado, deitada na cama a ver os bonecos na televisão, e a pão com nucrema, ou nucrema com pão. Sabe àquelas pessoas de plástico de 9 centímetros às quais passo a vida a mudar as perucas e as pernas. Toma lá umas pernas azuis, para combinar com a camisa. É isso, a minha casa na Pontinha cheira a pernas azuis dos playmobis.

Mas hoje devo estar constipada. Deve ser isso, porque não sinto nenhum cheiro familiar. Estou de férias em algum lugar. Sim, porque hoje não acordei no meu quarto cor-de-rosa. Nem acordei com a minha mãe a subir de rompão os estores, porque está um dia lindo lá fora, nem com as músicas dos Platters, ou com canções italianas. Hoje a minha avó também não me veio desafiar para um crapô. E o meu pai não chegou a casa, nem pousou a pasta de médico, parecida com a pasta do Dr. Freud, no armário da entrada. Os miúdos não discutiram sobre quem levava o carro hoje à noite. O Pedro não atirou as culpas para cima do Bruno e o Bruno não se atirou para o sofá a ver televisão. Não está ninguém em casa, ou será que eu é que me evadi de mim? Não. Devo estar de férias.

Estranho. Quem é este homem que agora todas as noites dorme e acorda comigo? Que parece que sabe quem eu sou e do que é que gosto. Que sabe que tenho medo de morrer a dormir, e que tenho medo de enlouquecer. Mas quem é este homem sentado ao meu lado com um anel igual ao meu, e que sempre se adianta e pede uma Coca-Cola por mim porque sabe que eu não bebo outra coisa? É giro, não vou dizer que não, e de vez em quando dá-me beijos na boca, sabem bem, não vou dizer que não, mas não deixa de me ser um estranho. Um estranho que me conhece. Será que me é alguma coisa? Um parente afastado? Um primo afastado apaixonado? Não. Não sei quem é. E não é da minha família. Nós somos cinco lá em casa. Não há o que enganar nas contas. Sempre fomos cinco: A minha mãe, o meu pai, eu e os miúdos. A minha avó mora no quarteirão a seguir, tenho um tio-avô em Linda-a-Velha e uma tia-avó na Rua dos Soeiros, e é isso, não nos damos com mais ninguém. E lá em casa somos 5.

Estranho. Dizem-me agora que As minhas águas rebentaram. Mas eu não estou a chorar nem estou com a menstruação. Eu acho que sofro é de incontinência. Sim, sinto água a correr pelas pernas abaixo, qual fonte contrariada. Depressa, é o primeiro filho, acabei de ouvir. Mas filho de quem? O meu nome é Sofia e eu moro com os meus pais na Pontinha. Vestiram-me uma roupa azul, e gritam, repetitivos, Puxe, puxe. Vá lá, só mais uma vez. E eu, obediente e de pernas abertas, vejo um bebé a sair de mim, a chorar desalmadamente. Quem é ele? Parece um dos meus Nenucos mas eu sei que não é meu. Os meus Nenucos não choram, não funcionam a pilhas.

8.04.2008

O Amor é grande, o homem pequeno

Espécie de raiz profunda
feita de sol e de sombra
sai de mim, sai de mim.
Deixa-me aqui deitada em terra fria
para que eu possa seguir o vento quente
que passou por mim, uma vez.
E eu vou, juro que vou,
ter com o Amor que é bem maior do que os homens.
Vou, juro que vou,
porque eu quero brilhar no escuro
e sentir o mundo com as mãos
Sentir castelos na língua
E respirar odes em noites de fado.
Porque eu sonho com o etéreo
deitada em mantos de estrelas
Porque eu vivo do sonho e sonho com o eterno
Eternamente.
Porque eu vivo pelo amor, e sem ele,
Deito-me todas as noites num trono frio
De um reino vazio.

7.16.2008

Livro de Colorir SATA

Das coisas que mais gostei de fazer na DraftFCB: uma estória para putos, sobre o Satinhas.

7.12.2008

Abelha

Uma abelha que procura a flor
Procura ter mais vida que a vida
E o seu zumbido é mais canto que outro canto qualquer.

Frágil

Frágil
Sinto-me frágil
Um vidro com medo de partir.
Uma onda a atrasar-se a quebrar.
Frágil
Sinto-me débil
Um som muito fino que acompanha
Perene o meu pensamento de ti
Umas notas suaves ao piano para não te acordar
Bebendo-te pouco para não estranhares
Um fio esticado com medo de quebrar
Um barco a remos com receio de os perder com o balanço
A minha mão aloja-se em ti contornando o teu corpo
Para que sintas o meu calor sem me expulsares de ti
E um som muito fino ao longe acompanha o meu pensamento.
Sinto-me frágil
Um vidro com medo de partir
Uma lágrima pronta a ser chorada
Só uma metade de mim a sorrir
Sinto-me débil
Uma alma esgotada
Uma menina pequena enamorada
Um corpo que se deixa cair
Tendo-te ainda e sabendo que vou ter de te deixar ir
Bebendo-te pouco para que não me descubras em ti
Tocando-te levemente para que não me expulses de ti
E um som muito fino ao longe acompanha o meu pensamento.
Sinto-me ténue.
Sinto-me tua.
Não me expulses de mim.

6.20.2008

Sonho

É talvez o primeiro dia da minha vida. Sonho, e torno-me mais do que um sopro incerto num céu indefinido. Imagino, e sou forte como árvores altas. E o vento incansável que anda à roda parece dizer-me: Lembra-te dos teus sonhos. Lembra-te dos teus sonhos. Lembro-me do caminho do meu desejo para a minha garganta e grito. Grito os sonhos que tenho dentro de mim. Os sonhos que já toco com as pontas dos meus dedos. E a Terra rasga-se e eles crescem apetecíveis. Parecem pintados com tinta.
Voo por cima das nuvens e salpico-me de ar. Agarro uma nuvem ou duas. Ora mando sol, ora mando chuva. Passo os dedos no céu e sinto a frescura. Aquilo que eu quis sentir quando ouvi o que o vento me disse. A Terra foi teatro e agora o céu é o palco.

4.16.2008

Luanda, onde estás tu?

Homens incompletos
Com uma perna das calças
Enrolada de qualquer jeito
E sem serventia

Coxas que terminam de repente
E sapatos encaixados
Em pernas postiças

Cidade de cicatrizes e cruzes
Antes eras florida
Agora tens mortos de guerra
Plantados nos teus jardins

Os que ainda sobram estão sós
Exaustos e famintos
Arrastam-se pelas ruas imundas
E afastam as moscas que voltam

Uma história com final infeliz
É a nossa
Abriga-nos debaixo desta terra
Vermelha e ainda amada

Tem pena de nós
Tira-nos de vez o funje de cada dia
E deixa-nos sangrar até à morte

De Luanda já não me lembro
Mas deve ter sido bonita...

4.01.2008

Olhos verdes

Sinto o zumbido de uma mosca na minha garganta
Sinto-lhe o gosto dos ovos postos na minha língua
Deixas as varejas no meu tapete vermelho
e eu contenho aos solavancos os vómitos dentro de mim.

Tu olhas para mim com os teus olhos verdes
Enquanto esfregas as tuas mãos uma na outra, uma na outra, uma na outra.

3.03.2008

Este texto é para ti, Susana

Ela é um ano e dois meses mais velha do que eu. Eu tinha 4 anos quando nós nos conhecemos. Ela tinha o cabelo pela cintura, castanho e liso. Eu tinha o cabelo pelos ombros, normalmente separado em duas partes com dois totós vermelhos. Conhecemo-nos debaixo da mesa da cozinha, que ficava encostada a uma parede com azulejos azuis, e onde eu passava muito tempo porque gostava da sensação de ter um tecto por cima, e no qual pudesse tocar.
Tinha acabado de chegar de Faro, onde morei dos dois aos quatro anos, e fixámo-nos em Lisboa. Eu passei a morar no 3º C, na casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela morava no 1º C e era filha da porteira. Chamava-se Susana Isabel da Silva Amaral e tinha primos com piolhos. Eu não gostava do Benfica porque o pai da Susana não a deixava brincar comigo, dizia a tudo que não quando o Benfica perdia. E o Benfica perdia muitas vezes. Eu não gostava dos primos dela que tinham piolhos. Volta e meia ela era levada pelos pais para a terra que se chamava Viseu para ir ao aniversário de um dos 15 primos que tinham piolhos.
Eu tive piolhos. Agora sei que os piolhos são insectos sem asas, de cor escura, pequenos, que se alimentam exclusivamente de sangue humano. Agora sei que os ovos dos piolhos são endurecidos e de cor branca tipo pérola e são chamados de lêndeas. São depositadas nos fios de cabelo, próximos do couro cabeludo, e deles nascem as ninfas que quando adultas depositam cerca de 80 ovos antes de morrer. Quando eu tinha 4 anos, as lêndeas não eram outra coisa senão os filhotes irrequietos dos piolhos, que gostavam muito de viajar, saltando facilmente de cabeça em cabeça. Nunca me importei de ter piolhos. Aliás, até gostava da extra atenção da minha mãe quando me revistava o couro cabeludo. Às vezes, e isto nunca lhe confessei, fingia ter comichão aqui e ali.
A Susana estava sempre presente. Lembro-me de brincar com ela e com os meus irmãos com legos e carrinhos. De nos construírem uma casa feita de lençóis na sala, presos por molas. Tendas anexadas a tendas. De nos sentarmos quietas e ansiosas pelo espectáculo de fantoches no beliche dos meus irmãos. De chorar desalmadamente quando o meu irmão Pedro incorporando o papel de cowboy maldito queimava os meus índios, depois de atados a paus e rodados sobre uma fogueira, tal espeto de javali grelhado sobre brasas. E da Susana deliciar-se a ver-nos a brincar, porque dizia que preferia ver do que estragar alguma coisa. Lembro-me do meu irmão Bruno me torturar com cócegas quando me ia buscar à escola primária nº 2 da Pontinha. Lembro-me da Susana ter contado à minha avó que o Marcos me tinha dado um beijinho na boca, e de eu ter sido obrigada a lavar os dentes, os lábios e a língua com sabão azul e branco, quando o beijinho na boca fora na verdade um leve e tímido encostar de lábios muito juntos e esticados. Lembro-me de lhe contar estórias inventadas à pressão só para a distrair, porque ela estava triste. Lembro-me dela ser canhota e eu achar muita piada. E de com as nossas mãos termos feito um carro viajar até ao futuro, passando com o carrinho perto da rota de fios de algodão ensopados em álcool, e depois incendiados pelo meu irmão quase pirómano. Lembro-me de querer ser bombeira. E ela polícia. Lembro-me de partilhar todos os meus brinquedos com ela. De andar de bicicleta à volta do quarteirão, por turnos. Primeiro ela. Depois eu. Depois ela. Depois eu. E o meu Pai e os meus irmãos correrem atrás para que se caíssemos fossemos agarradas. Lembro-me dela a tapar a boca com as duas mãos, de ficar vermelha e parecer que podia explodir a qualquer segundo, e de me implorar que eu parasse de contar piadas porque ela não conseguia respirar se se risse assim tanto. Lembro-me de lavarmos as duas as roupinhas das nossas bonecas no tanque. Em dois tanques pequenos, feitos ao nosso tamanho, e que a minha mãe comprou para nós. Lembro-me de nos esticarmos para pendurar as roupas nos varais do 1º C. Lembro-me de ficarmos as duas na varanda do 3º C a olhar para o prédio alto e cheio de janelas iluminadas que ficava depois do descampado, onde eu costumava colher flores com a minha avó. E eu dizia-lhe frequentemente que eu ainda havia de morar naquele prédio de reis e rainhas, quando fosse crescida. E que a levava comigo. Lembro-me de lhe dizer, agora eras a policia e eu era o ladrão e tu tentavas prender-me porque eu tinha roubado as maçãs da mercearia do senhor Mário e da senhora Odete. Ela sempre quis ser polícia. Eu sempre quis ser um ladrão.
Lembro-me de tanta coisa. De a ter convencido a brincar às cabeleireiras na sala da casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela, com a voz fina e instável de 5 anos, perguntava-me pela terceira vez, ó Sofia, não vais cortar a sério, pois não? E eu dizia-lhe, fica descansada que a tesoura é de brincar. Mas vira-te para a frente. Vira-te para a frente senão não brinco mais contigo. E ela virava-se para a frente. E eu cortar-lhe-ia o cabelo pelas orelhas. E ela agradecer-me-ia, porque assim ficava mais bonita. Sempre tive a certeza de que se eu lhe dissesse, faz isto, faz aquilo, senão nunca mais sou tua amiga, ela fazia. Uma amizade assim nunca mais tive.
Agora moro no 1º B desse prédio que não tem reis nem rainhas, a senhora Odete morreu com um cancro, tu moras em Viseu e trabalhas numa fábrica de material de automóvel. Mas eu, quando vou visitar a minha avó, continuo a olhar da varanda do 3º C para baixo, e procuro no varal as roupas das nossas bonecas penduradas. E por vezes, quando volto para minha casa, engano-me e vou bater ao 1º C. Vamos andar de bicicleta. Vamos vestir e pentear as bonecas. Vamos brincar com plasticinas. Vamos cantar ao microfone. Vem brincar comigo, Susana, senão nunca mais sou tua amiga.

3.01.2008

Hoje quase sorri.


Os últimos meses têm sido bons, tenho quase sorrido. Mas incomodam-me esses quase. O que quase ganhou ainda pode perder porque ainda joga. O que quase partiu mas que continua no mesmo lugar. Se calhar sou cobarde. Podia decidir de uma vez por todas entre a alegria ou a tristeza. Mas esta vida a meio gás, o tempo que não passa nem depressa nem devagar, tem-me prisioneira. Gosto de pensar que não pertenço a lado nenhum. Que não tenho raízes. Que não tenho família nem amigos de infância que sabem qual era o meu jogo preferido, ou que se lembram das fitas que fazia quando era pequena. Gosto de pensar que não tenho passado. Nasci aqui em Lisboa e nasci com 30 anos. Aparentemente não sou casada porque vivo num quarto arrendado bem perto do café A Brasileira. Aparentemente também não tenho amigos porque sou muito solitária. Tenho as minhas rotinas e elas são cheias de nada ou de ninguém. Não vou tomar café com amigos, não tenho encontros com rapazes. Ninguém me conhece e eu não conheço o meu passado. Gosto de pensar que posso pegar na mochila e colocar lá dentro a única coisa que me interessa guardar. Aquela fotografia. Daquele momento que não recordo porque nasci com 30 anos. Daquele momento que não vivi porque apaguei de mim todas as memórias. Porque não me lembro. Não me lembro do que fiz, do que fizeste, do que eu fiz porque fizeste. Ou porque fiz o que tinha a fazer. Não me lembro, ou não me recordo, ou esforço-me para não me lembrar. Não te deixes errar outra vez, digo-me a mim própria. Ainda vou a tempo. Ainda vou a tempo porque ainda me lembro da última vez que sorri.

2.18.2008

És bonito demais

E eu amo-te tanto que uma vida toda contigo não me é suficiente.

11.30.2007

Ao vinho

Dizem que nasceste por acaso
Talvez por uma mão-cheia
De uvas esmagadas e esquecidas

Dizem que és da cor da terra,
Da rosa e do sangue
Que tens a cor da noite e também a do dia

Dizem que moves os homens
Que apressas a Primavera
E que foste tu quem inventou a alegria

Encontra-te comigo hoje
E à luz de uma garrafa
Vamos dar a palavra aos pensamentos

Na próxima noite é a lua que nos procura.

11.21.2007

Não tragam flores que eu sofro

No dia em que morreste
Morri eu também a olhar para ti
Meti-me para dentro de mim
E fechei a janela

Os meus lábios sabem-me a antigo.

Nem na morte espero dormir
Vou andar pelo Mundo
Qual cadáver acordado
Porque me culpo

Os meus lábios sabem-me a antigo.

Acendo um cigarro
Se bem que não fumo
E a minha boca velada
Não dirá nada

Os meus lábios sabiam-me a antigo.

Sou feliz agora morta
Longe dessa prisão fechada
Que era o Mundo sem ti.

8.28.2007

Mosca da azeitona

Estavas sentado à minha frente no comboio. Olhavas para a mulher rechonchuda sentada a teu lado, para o casal de namorados aos beijos no banco de lá, olhavas para mim sem disfarce, para o meu reflexo no vidro da carruagem, para o teu reflexo junto ao meu, e voltavas a olhar para a mulher rechonchuda sentada a teu lado. Os movimentos dos teus olhos eram hexagonais, como uma mosca da azeitona.
Comecei a ficar impressionada contigo quando me apercebi que repetias os mesmos movimentos, metodicamente, sem que no entanto observasses nada. A mulher rechonchuda, os namorados, eu e os nossos reflexos, eram simples pontos de foco.
E tu, sem fisionomia, seguias invariavelmente a mesma rota sem nunca chegares a lado nenhum. Eu desviava o olhar um segundo exacto antes de me transformares num dos teus pontos de foco. Fazia-me distraída, para depois reconciliar o meu olhar em ti. Na tua camisa com a gola bem engomada que me falava do teu perfeccionismo. No teu cabelo militaristamente penteado que me apresentava o teu pai, que te deixava de falar quando o teu cabelo castanho – de encantos tamanhos – crescia uns infelizes centímetros. Barba, penso até que nunca tiveste. E tu continuavas com o teu olhar de pestanas longas e escuras perdido em movimentos hexagonais, sem nunca me encontrares a olhar para ti quando passavas os olhos no teu ponto de foco preferido. Era em mim que te demoravas mais.
Entraste no curso de medicina, porque o teu pai assim pensou que querias, ou não pensou que não quisesses. Quando tinhas quase seis anos, a meio de um jantar de família o teu pai disse-te, António, levante-se e pule até eu lhe dizer que pare. E tu pulaste, até que ele se enfadasse com o barulho dos teus pés no soalho, até que ele se incomodasse com o barulho dos teus pés no soalho.
Dei por mim a olhar para ti fixamente. Lembravas-me uma mosquinha das frutas, engrenada na sua rota sem sentido. Paravas o teu olhar na mulher rechonchuda que sentada a teu lado se agarrava a uma revista cor-de-rosa, entretendo-se com as notícias de uma tia que engordou, ou de um casal que se separou. Tu, voltavas a desviar o olhar, voltavas a apanhar o casal de adolescentes que sem pudor tentavam chegar com a língua ao céu-da-boca do outro.
Já deves ter reparado, António – quieto como és – nas tuas moscas volantes. Nas sombras que aparecem sozinhas no teu campo visual, quando ficas parado a olhar para o vazio. Tu, António – quieto como és – já deves ter notado as moscas que às vezes são pontos, outras vezes linhas, ou fragmentos de teias de aranhas, que flutuam morosas em frente dos teus olhos. Dos meus olhos. E depois piscamos e elas sobem. Desaparecem. Foi o que me aconteceu contigo. Eu distraí-me e perdi-te de mim. Levanto-me da minha cadeira, na carruagem, e sou novamente uma menina com medo de fantasmas num corredor enorme e escuro, que parece nunca mais acabar. Pisquei os olhos e desapareceste. Até voltares a aparecer no dia seguinte no jornal. Tinhas te atirado para a linha do comboio. Chamavas-te mesmo António, e tinhas quase 20 anos. Quase vinte anos e eu não fiz nada. Quase vinte anos e eu limitei-me a observar os teus movimentos hexagonais. Quase vinte anos e eu fui apenas um ponto de foco para ti. Pisquei os olhos e tu desapareceste. E eu serei para sempre a menina com medo do teu fantasma num corredor que nunca mais acaba.

7.23.2007

Nao sei para onde vamos

Mas já estamos a caminho.

Este poema é o meu medo

As minhas palavras não ditas
Estão perdidas dentro de mim.

7.06.2007

Herói sem medo

O teu silêncio faz eco.

Fiiiuuu, fiuuu fiuuriiuu


Assobiar, soltar assobios, sibilar, silvar, vai tudo dar ao mesmo. Quando não somos nós a fazê-lo, irrita. E o assobio ou assovviiiiuuuu deste homem é particularmente desconcertante. O senhor é simpático, o assobio é que arrelia.
Como todos os assobios, este nasce a partir de uma produção perturbadora de som definida a partir da expiração constante de uma boca. Este senhor, semi-cerra os lábios em forma de O pequenino, portanto em forma de o, e dá início à concertina. No final do dia, como será a condição física daquela boca exaurida? Dessa boca infeliz, sacrificada, esgotada? Dessa boca que para além de instrumentalizada e escravizada é excessivamente salpicadora. Sim, quando parece que não vai piorar, piora. E o monitor do, vamos chamá-lo assim, Sr. Assobia está cheio de gotículas, pixeis de saliva, nacos do comida de ontem e retalhos do jantar de há três dias.
É grande este problema e ganha proporções titânicas quando se trabalha, como eu, num open-space com humanos-assobiadores à nossa volta. Ter por hábito direccionar o coitadinho do ar pela língua, lábios e dentes para criar a turbulência necessária e com ela gerar um som irritante, passo a redundância, irrita. É talvez das poucas coisas que me irritam. E eu, estúpida, não trouxe headphones. Sinto-me impiedosamente a ser puxada para o fiuu fiiiuuu rrriu rrriiuuu. Os meus pensamentos dissipam-se aos poucos quais bolas de sabão rebentadas por dedos inquisidores à medida em que o meu canal auditivo vai sendo assenhorado pelo fiuuu fiuuu riuuu fiuuuuuiiii. A minha sábia avó é que sabia. Dizia-me que a nossa liberdade de assobio termina quando começa a liberdade de assobio do outro. Nem mais. E eu não posso fiuuuu fiuuu riuuuu simplesmente ir lá e dizer fiuuu fiuuuu ó Sr. Assobia pára lá com fiuuu fiuuuu fiu fiuuuuuu fiuuu porque acaba por fiuuu fiuuu fiuuu rrriiiu ffiiiiuu fiiiiuuu riuuuu friu friuuu fiuuu iuuuu mmmmmm mmm fiuuuuu fiuuu mmm riuuuuu...

7.05.2007

Tenho uma boca triste

que só se abre para calar.

6.29.2007

Eu tenho medo

de um dia deixar de ter medo.

5.24.2007

A saudade ocupa a noite toda

Mas em cada ano com a Primavera as flores aparecem, e o inverno um dia cessa.

Já não

Já não quero que passes as tuas mãos no meu cabelo. Nem que olhes para mim. Já não quero que me agasalhes de promessas em noites frias. Nem ser feliz.

E porque agora quero pouco, tenho tudo.

5.21.2007

Mein Schatz

O que mais me dói na tua ausência é não ver a tua escova de dentes junto da minha.

5.10.2007

O funeral foi meu, amor.

Já se passaram tantos anos desde a última vez que te vi. Já passou tanto tempo desde a nossa última viagem de comboio. Foste tu que morreste mas o funeral foi meu. E desde esse dia, nunca mais consegui chorar. Mas quem é que chora no seu próprio funeral?

3.12.2007

E sob um céu vago

Eis o momento.
A morte virá tarde
Porque tudo acabou cedo.

3.04.2007

As tuas palavras sobram



Passas e agitas a brisa que delira
e para ti sou sempre nova
A beberes nem me recordas

Bebes-me nos recantos em que me escondo
onde a água tem cor de vinho
e os ventos estão desatentos

E eu espero a chorar e choro um pouco mais
pelo meu homem tranquilo e transparente
que me deseja num desejo mal contido

Apagas o gosto da noite triste e lenta
e tragas as horas que findam já gastas
em nevoeiros e desencantos demorados

Desalgema-te das minhas mãos
Todos os dias imperfeitos são meus eleitos
porque a tua perfeição era mentira.

1.25.2007

A tua última vez nunca é a última vez


Ondulas pelas ruas
em estradas feitas de chuva
sob céus de duas luas.

Vassalo de Rei.

Preferes a rua a um abrigo
E eu que te amo,
Tenho a vida e a morte comigo.

1.16.2007

És um pequeno leao?

Filho de Mufasa e da rainha Sarabi?
Está bem, Simba. Hakuna matata para ti também. Neste momento estás muito instável, é um facto. Não sabes se hás de ser engenheiro, advogado ou o sucessor do Rei Leão. Já pensaste em não ser nada disso e ires viver para uma ilha deserta, pescares o teu peixe e agarrares os teus javalis. Já quiseste ser o lobisomem porque não te dás bem com o inverno. Já quiseste ser um assassino em série para depois escreveres um livro. Já quiseste ser ladrão e sonhaste que roubavas bancos internacionais aos fins de semana. Já experimentaste limpar vidros em arranha céus, já tentaste abastecer jactos em pleno ar, e já viajaste até ao pulmão do mundo só para veres ao vivo uma anaconda. Já te imaginaste a viver numa distante cidade do Oriente, mil e uma noites. Já sonhaste que encontravas um tesouro e roubavas quarenta ladrões. Já sonhaste que combatias incêndios florestais na Sibéria, que saías à noite pela cidade a cortar cabeças, ou que passavas os dias a demolir edifícios com centenas de euros em dinamite a teus pés. Já sentiste que voavas e tens medo de enlouquecer. Em pequeno fazias experiências pirómanas com formigas e enchias folhas e folhas com textos simulados quando ainda nem sabias escrever. Numa mesma semana quiseste ser actor, fotojornalista, e piloto de testes de avião. Já quiseste conduzir veículos pesados em pontes frágeis de madeira. Já quiseste ser o homem aranha. Já quiseste ser lenhador, correspondente de guerra, e bombeiro pára-quedista. Está bem. Neste momento ainda te sentes instável. Mas já sabes que queres ser copywriter e estás ansioso pela batalha final. Ou te cortam a cabeça, ou te tornas imortal.

1.11.2007

A minha mae costuma dizer

Laranja de manhã é ouro, à tarde prata e de noite mata.
Acho isso muito estranho. Nunca ouvi falar de alguém que se tenha tentado suicidar com dois copitos de sumo de laranja.

12.29.2006

Supersticoes

Muitas sao as simpatias para o ano novo comecar bem e terminar em grande. Vou deixar-vos uma, para quem quiser atrair o grande amor. Descalce-se e acenda uma vela. Depois de acesa, derrame mel em volta da vela, quatro búzios, quatro moedas de mesmo valor e oito ou dezesseis rosas amarelas (tenha cuidado para nao serem desassete rosas amarelas senao em vez de um grande amor, aparece uma grande lapa). Sete voltas ao pé coxinho. E tem de ser com o pé direito (quem só tiver um pé está tramado, porque se saltar com o pé esquerdo em vez de um grande amor aparece um assassino em série). Atire pétalas por cima da sua cabeca enquanto grita, virado para noroeste: Devo ser mesmo totó para acreditar nisto. Se gritar bem alto, encontrará o amor da sua vida e terá uma vida sexual mais-que-perfeita para o resto da sua
vida. Um beijinho bem grande, entrem bem no ano 2007. Com saúde, amor, família e amigos.

12.04.2006

E chove


Tu perguntas e eu não sei,
Eu também não sei o que é a chuva.
O meu eu desencantado diz-nos,
É talvez o céu que chora.

Que o medo nunca me impeca de tentar

Porque eu só quero um mar com grandes ondas.

11.28.2006

És cego

Mas só porque me escondes os olhos.

11.20.2006

Tipos de casas

Há casas de botões
Há casas tipo casulos
Há casas tipo cápsulas
Há casas tipo campas
Há casas abandonadas
Há casas de campo
Há casas de cidade
Há casas abertas
Há casas com janelas
Há casas de bonecas
Há casas de miniatura
Há casas em papel
Há casas em playmobil
Há casas contigo
Há casas sem ti
Há casas comigo?

Há casas e casas

Há casas em que me sinto em casa. Há casas em que me sinto na rua.

11.18.2006

O tempo

Hoje está muito constipado.

11.08.2006

Quando te digo que te amo

Quero ouvi-lo também de ti.
Porque o amor não sobrevive sem ecos.

Amar-te de longe


É ter asas e não poder voar.

9.26.2006

De alma recolhida

O quarto estava frio. O quarto estava frio e ele lia, As armas e os barões assinalados que da Ocidental praia Lusitana por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana em perigos e guerras esforçados mais do que prometia a força humana. O quarto estava frio, ele lia, e as cortinas tocadas pelo vento encostavam-se às janelas. Ora cresciam onduladas. Ora diminuíam encolhidas. O Ricardo esticava o braço, a mão e as pontas dos dedos. O Ricardo recolhia o braço. O Ricardo recolhia os olhos. E levava novamente o olhar para, Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da Morte libertando.
Quando a luz já não o deixava ler, guardava o livro na cómoda e as mãos quietas debaixo do lençol. Fechava os olhos castanhos de tristezas tamanhas e inspirava fundo, desconfortavelmente bem fundo. Sentia dores nas pernas e comichão nos pés. Ignorando-as, recolhia as lágrimas que já lavavam os olhos, ajeitava a almofada e adormecia. As lágrimas juntavam-se e formavam rios, dos rios cresciam mares. E as sombras do vai-e-vem das cortinas continuavam.
De olhos fechados, o campo era largo, a noite escura e ele corria. Tinha 6 anos e brincava com os amigos aos invasores. Enquanto todos se defendiam ele atacava, porque a mãe sempre lhe disse que, A melhor defesa é um bom ataque. E ele sempre ouvia a mãe. Por isso, escondido atrás de pedras e buracos que faziam de trincheiras, soltava um grito de guerra e saltava vitorioso de espingarda na mão em forma de cajado, numa investida que lhe valeria depois uma cicatriz. A correr, saltou em falso e os pés e as mãos correram no ar, até caírem com o resto do corpo na vala. Arrancou os olhos do chão e depois as silvas das pernas e dos braços. Não chorou. A saliência estreita na perna direita passou a fazer parte dele. E para adormecer, enquanto uns contavam carneiros, ele passava a mão na cicatriz até adormecer.
A mãe entrou no quarto e disse, Bom dia. Ele não a ouviu. Abriu as cortinas do quarto e prendeu-as com as fitas. Deu-lhes dois laços. Queria que o Ricardo olhasse pela janela. Que ele ainda quisesse ver tudo, tocar em tudo. O Ricardo, que tinha os olhos nas pontas dos dedos. O Ricardo, que se entretinha a observar as pessoas e a calcular-lhes a vida pelos olhos, pelas roupas, pelo andar. Que corria em vez de andar. Que se ria em vez de sorrir. Prendeu as cortinas com as fitas e deu-lhes dois laços. Porque ela queria o Ricardo como ele era antes de ter tido o acidente. Antes de lhe terem amputado as duas pernas abaixo do joelho por causa de um acidente de mota. Antes de lhe terem cortado as pernas abaixo do joelho por causa de um homem que vinha em sentido contrário num carro roubado. Por causa de um homem que saiu ileso do acidente, sem uma cicatriz. Por causa de um homem que ainda pode andar e ainda conduz por estas estradas de Lisboa. O Ricardo ainda precisa de tempo para se habituar. Para se esquecer que teve pernas durante 21 anos ou para aprender a viver sem elas o resto da vida. Tens de reagir, disse-lhe a mãe ao prender as cortinas com as fitas. Ele não a ouviu. Não a ouve nem ouve ninguém. E com as dores do passado, deixa-se todas as noites adormecer. Mas temos de lhe dar tempo. Porque ele ainda sente dores nas pernas que não tem. Comichão nos pés que não tem. Ainda sente vontade de adormecer a passar a mão na cicatriz da perna que não tem.
Falta qualquer coisa neste texto para o fechar, mas não o consigo acabar. Mas a mim, só me faltam as palavras.