De alma recolhida
O quarto estava frio. O quarto estava frio e ele lia, As armas e os barões assinalados que da Ocidental praia Lusitana por mares nunca dantes navegados passaram ainda além da Taprobana em perigos e guerras esforçados mais do que prometia a força humana. O quarto estava frio, ele lia, e as cortinas tocadas pelo vento encostavam-se às janelas. Ora cresciam onduladas. Ora diminuíam encolhidas. O Ricardo esticava o braço, a mão e as pontas dos dedos. O Ricardo recolhia o braço. O Ricardo recolhia os olhos. E levava novamente o olhar para, Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da Morte libertando.
Quando a luz já não o deixava ler, guardava o livro na cómoda e as mãos quietas debaixo do lençol. Fechava os olhos castanhos de tristezas tamanhas e inspirava fundo, desconfortavelmente bem fundo. Sentia dores nas pernas e comichão nos pés. Ignorando-as, recolhia as lágrimas que já lavavam os olhos, ajeitava a almofada e adormecia. As lágrimas juntavam-se e formavam rios, dos rios cresciam mares. E as sombras do vai-e-vem das cortinas continuavam.
De olhos fechados, o campo era largo, a noite escura e ele corria. Tinha 6 anos e brincava com os amigos aos invasores. Enquanto todos se defendiam ele atacava, porque a mãe sempre lhe disse que, A melhor defesa é um bom ataque. E ele sempre ouvia a mãe. Por isso, escondido atrás de pedras e buracos que faziam de trincheiras, soltava um grito de guerra e saltava vitorioso de espingarda na mão em forma de cajado, numa investida que lhe valeria depois uma cicatriz. A correr, saltou em falso e os pés e as mãos correram no ar, até caírem com o resto do corpo na vala. Arrancou os olhos do chão e depois as silvas das pernas e dos braços. Não chorou. A saliência estreita na perna direita passou a fazer parte dele. E para adormecer, enquanto uns contavam carneiros, ele passava a mão na cicatriz até adormecer.
A mãe entrou no quarto e disse, Bom dia. Ele não a ouviu. Abriu as cortinas do quarto e prendeu-as com as fitas. Deu-lhes dois laços. Queria que o Ricardo olhasse pela janela. Que ele ainda quisesse ver tudo, tocar em tudo. O Ricardo, que tinha os olhos nas pontas dos dedos. O Ricardo, que se entretinha a observar as pessoas e a calcular-lhes a vida pelos olhos, pelas roupas, pelo andar. Que corria em vez de andar. Que se ria em vez de sorrir. Prendeu as cortinas com as fitas e deu-lhes dois laços. Porque ela queria o Ricardo como ele era antes de ter tido o acidente. Antes de lhe terem amputado as duas pernas abaixo do joelho por causa de um acidente de mota. Antes de lhe terem cortado as pernas abaixo do joelho por causa de um homem que vinha em sentido contrário num carro roubado. Por causa de um homem que saiu ileso do acidente, sem uma cicatriz. Por causa de um homem que ainda pode andar e ainda conduz por estas estradas de Lisboa. O Ricardo ainda precisa de tempo para se habituar. Para se esquecer que teve pernas durante 21 anos ou para aprender a viver sem elas o resto da vida. Tens de reagir, disse-lhe a mãe ao prender as cortinas com as fitas. Ele não a ouviu. Não a ouve nem ouve ninguém. E com as dores do passado, deixa-se todas as noites adormecer. Mas temos de lhe dar tempo. Porque ele ainda sente dores nas pernas que não tem. Comichão nos pés que não tem. Ainda sente vontade de adormecer a passar a mão na cicatriz da perna que não tem.
Falta qualquer coisa neste texto para o fechar, mas não o consigo acabar. Mas a mim, só me faltam as palavras.
Silencios que te falam
Para ti tenho palavras e silêncios.
Mais silêncios que palavras.
Palavras tímidas que se embrulham na minha língua.
Que se escondem nos meus dentes e não se deixam sair.
Para ti tenho palavras e silêncios.
Ortografias comprometidas. Sintaxes desconhecidas.
E tu sorris mesmo quando não ouves nada.
Lês-me entre silêncios.
Amas-me entre palavras.
Quartos sem quadros
Do dia 13 ao dia 20 de Junho de 2004, estive deitada numa cama do hospital Santa Maria.
Sete dias fechada num quarto cinzento ou branco-sujo sem janelas.
Sete dias fechada entre quatro paredes que não me falavam. Nem respondiam.
Oito noites de cheiros de remédios e adormecida pelas vozes doridas dos doentes que também passavam os dias e as noites deitados em quartos cinzentos ou brancos-sujo sem janelas.
Durante uma semana não vi o contorno castanho dos galhos das árvores nem o contorno das folhas verdes no céu.
Durante uma semana os meus cabelos nunca me foram parar à boca com o vento. Nem uma vez fiquei com os cabelos cheios de nós por causa do vento.
Durante uma semana os meus olhos nunca se ressentiram com a luz do sol. Nem uma vez franzi a testa ou cerrei os olhos por causa da claridade. Durante uma semana os meus pés só sentiram o frio do lencol sem cor da cama do hospital ou o chao frio do hospital sem cor, quando me levavam da cama para a cadeira, ou quando eu ia da cadeira para a cama.
Quando saí do hospital, sete dias e oito noites depois de ter sido operada de urgencia ao ovário direito, cada pedacinho de normalidade se tinha transformado em felicidade.
Sou muito mais feliz agora.
Sinto-me uma criancinha com varíola
Dizia eu que não acredito em amor à primeira vista.
Mas Salvador Dali já desenhava a figura de Gala antes mesmo de ter falado com ela. E mesmo depois de Gala ter morrido, nunca nenhuma outra chegou para a substituir. A Gala não era um pneu furado.
Mas dizia eu que não acredito em amor à primeira vista. Por isso, acho que nem sei como te explicar. Conheces o método de vacinação usado pelos antigos chineses contra a varíola? Estranhamente, eles trituravam as cascas das feridas provocadas pela doença, onde o vírus estava presente apesar de morto, e através de um cano de bambu, sopravam esse pó para dentro das narinas das criancinhas.
Foi assim que me senti. Como se te tivesses soprado para dentro das minhas narinas, quando disseste olá e te apresentaste. Senti o cheiro das tuas palavras e como quem estala o polegar e o dedo médio, inclinaste-me para ti. Apeteceste-me, e como uma maçã verde, depois de mordida, espalhaste-te dentro da minha boca livremente.
Pois é, dizia eu que não acredito em amor à primeira vista. Por isso, passa por mim outra vez.
Dali. The Persistence of Memory (1931). Também chamado de Soft Watches ou Melting Clocks. Contra a ideia de que o tempo é rígido ou determinante.
Porque ainda vais a tempo
Ainda ficas parado a olhar para a neve a cair?
Ainda queres tocar em tudo?
Ainda gritas quando estás feliz?
Ainda te deixas ficar encharcado à chuva?
Ainda te sentes a corar quando te despem de pensamentos?
Ainda gritas numa casa vazia para ouvires o eco da tua voz?
Ainda acordas com vontade de brincar?
Ainda te ris sem conseguires parar?
Ainda fazes castelos na areia?
Ainda acreditas em contos de fadas?
Ainda te apaixonas como se fosse a primeira vez?
Ainda corres para chegares mais cedo?
Ainda queres saber tudo?
Ainda te faltam as palavras?
Espero que ainda digas que sim.
Admiro os que nunca se habituam ao mundo.
Uma brisa leve ou um vento vago
E a ti, o que te faz chorar?
O que sentes?
Quero para mim o teu amor
Só quero tornar-nos grandes
Crescer tanto quanto tu cresces em mim
Como será por dentro de ti?
Ao certo sabemos apenas o que há dentro de nós
E eu sem ti nem sei de mim.
Encosto a minha barriga à tua
E eis que a memória dos mortos desaparece.
À minha Avó, a quem chamo de Mãe
Composição:
Os meus 5 anos
Tenho saudades da criança que fui. Já tenho 25 anos, faltam-me cinco anos para os 30 e já passaram vinte anos dos meus 5. Já passaram 20 anos desde que éramos seis pessoas em casa e seis pessoas no carro, seis cadeiras na mesa de jantar e seis pratos para as minhas mães lavarem. Já passaram duas décadas desde o meu primeiro dia de escola. Desde o dia em que chorei os rios do mundo quando tu e os meus pais me deixaram à porta da sala 1, e eu pensei que nunca mais vos ia voltar a ver. Desde o dia em que me fizeste lavar a boca com sabão azul e branco por ter dito uma palavra má. Desde os dias em que aprendi contigo a rezar, a agradecer e a acreditar em Deus. Já lá vai tanto, mas tanto tempo desde aqueles dias em que o meu irmão Bruno me ia buscar à escola e me fazia cócegas com o dedo mindinho no meu pequeno pulso, sempre que me dava a mão para atravessar a estrada. Já lá vão 20 anos desde os dias de composições sobre As minhas férias, O que quero ser quando for grande, ou Se eu fosse uma árvore. Já lá vai tanto tempo desde aqueles exercícios ortográficos com 0 erros ou desde o meu primeiro T.P.C.: fazer cinco linhas da letra i, sem esquecer de fazer a pintinha do i. Vinte anos desde aquele dia em que me sentei na minha cadeira de madeira nova, na minha secretária nova, toda orgulhosa porque já andava na escola. Já passou tanto tempo, desde aqueles tempos em que demorava tanto para adormecer. Desde os tempos em que não gostava de comer. Desde aqueles dias em que pensava que todas as pessoas do mundo eram boas.
Agora tenho 25 anos, e aconteceu tudo tão depressa. Quero que a vida pare, e volte atrás só mais uma vez. Tenho saudades da criança que fui. Quero voltar a andar de bicicleta no parque, aos Domingos de manhã com o meu Pai. Quero voltar a ir uma vez por semana com a minha mãe ao cinema nas Amoreiras. Quero que me voltes a mandar reescrever um texto de página e meia só para fazer a letra f mais bonita. Quero voltar a espreguiçar-me no teu colo, enquanto me chamas de Salsa Parrilha, Panqueca Dourada ou de Meu Filho. Quero voltar a acreditar na bondade de todas as pessoas. Quero voltar a ficar nervosa com o primeiro dia de aulas. Quero voltar a discutir com os meus irmãos e acabar a chorar, e que o Pedro brinque comigo aos teatros. Pedro, brinca comigo aos teatros! Quero acordar aos Sábados bem cedo para ver os bonecos e voltar a ficar indecisa: brinco com os Legos ou com os Playmobis?
Agora, tenho 25 anos, e fico nervosa com o primeiro dia de trabalho. Já tenho casa, e já pago contas. Os meus irmãos casaram, o meu afilhado Marcos nasceu, e eu tenho o meu Amor comigo. Agora, dou jantares em minha casa com as mesmas cinco pessoas da minha vida, mais 4. Ponho eu a mesa, são 9 pratos e um deles é bem pequenino. As vezes, ainda vejo desenhos animados aos Sábados de manhã, e ainda discuto com os meus irmãos e choro. Ainda dou a mão quando atravesso a rua e ainda tenho o pulso fininho. Ainda demoro a adormecer...
Vendo bem, sou a mesma criança que fui. Já não tenho saudades de mim. A vida é tão bonita como dantes, só diferente.
Os meus dias só contam quando estás
Passei a noite toda sem dormir
A tentar enganar-me
A tentar convencer-me de que estavas aqui ao pé de mim
Passei a noite toda sem dormir
A sonhar que a minha perna era a tua
Que a minha mão era a tua
Às vezes penso que preferia não ter de te encontrar
Para não ter de te deixar
Porque os meus dias só contam quando estás
Pergunto-me a mim mesma devagar
Quando vens para ficar?
Following our hearts
There is no place we can call home, if we are alone.