Mosca da azeitona
Estavas sentado à minha frente no comboio. Olhavas para a mulher rechonchuda sentada a teu lado, para o casal de namorados aos beijos no banco de lá, olhavas para mim sem disfarce, para o meu reflexo no vidro da carruagem, para o teu reflexo junto ao meu, e voltavas a olhar para a mulher rechonchuda sentada a teu lado. Os movimentos dos teus olhos eram hexagonais, como uma mosca da azeitona.Comecei a ficar impressionada contigo quando me apercebi que repetias os mesmos movimentos, metodicamente, sem que no entanto observasses nada. A mulher rechonchuda, os namorados, eu e os nossos reflexos, eram simples pontos de foco.
E tu, sem fisionomia, seguias invariavelmente a mesma rota sem nunca chegares a lado nenhum. Eu desviava o olhar um segundo exacto antes de me transformares num dos teus pontos de foco. Fazia-me distraída, para depois reconciliar o meu olhar em ti. Na tua camisa com a gola bem engomada que me falava do teu perfeccionismo. No teu cabelo militaristamente penteado que me apresentava o teu pai, que te deixava de falar quando o teu cabelo castanho – de encantos tamanhos – crescia uns infelizes centímetros. Barba, penso até que nunca tiveste. E tu continuavas com o teu olhar de pestanas longas e escuras perdido em movimentos hexagonais, sem nunca me encontrares a olhar para ti quando passavas os olhos no teu ponto de foco preferido. Era em mim que te demoravas mais.
Entraste no curso de medicina, porque o teu pai assim pensou que querias, ou não pensou que não quisesses. Quando tinhas quase seis anos, a meio de um jantar de família o teu pai disse-te, António, levante-se e pule até eu lhe dizer que pare. E tu pulaste, até que ele se enfadasse com o barulho dos teus pés no soalho, até que ele se incomodasse com o barulho dos teus pés no soalho.
Dei por mim a olhar para ti fixamente. Lembravas-me uma mosquinha das frutas, engrenada na sua rota sem sentido. Paravas o teu olhar na mulher rechonchuda que sentada a teu lado se agarrava a uma revista cor-de-rosa, entretendo-se com as notícias de uma tia que engordou, ou de um casal que se separou. Tu, voltavas a desviar o olhar, voltavas a apanhar o casal de adolescentes que sem pudor tentavam chegar com a língua ao céu-da-boca do outro.
Já deves ter reparado, António – quieto como és – nas tuas moscas volantes. Nas sombras que aparecem sozinhas no teu campo visual, quando ficas parado a olhar para o vazio. Tu, António – quieto como és – já deves ter notado as moscas que às vezes são pontos, outras vezes linhas, ou fragmentos de teias de aranhas, que flutuam morosas em frente dos teus olhos. Dos meus olhos. E depois piscamos e elas sobem. Desaparecem. Foi o que me aconteceu contigo. Eu distraí-me e perdi-te de mim. Levanto-me da minha cadeira, na carruagem, e sou novamente uma menina com medo de fantasmas num corredor enorme e escuro, que parece nunca mais acabar. Pisquei os olhos e desapareceste. Até voltares a aparecer no dia seguinte no jornal. Tinhas te atirado para a linha do comboio. Chamavas-te mesmo António, e tinhas quase 20 anos. Quase vinte anos e eu não fiz nada. Quase vinte anos e eu limitei-me a observar os teus movimentos hexagonais. Quase vinte anos e eu fui apenas um ponto de foco para ti. Pisquei os olhos e tu desapareceste. E eu serei para sempre a menina com medo do teu fantasma num corredor que nunca mais acaba.