5.19.2006

Uma cereja, duas cerejas


A propósito do eterno retorno, deixem-me ainda contar-vos uma coisa. Antes disso, quero esclarecer-vos. Esta imagem, infelizmente, foi roubada a um banco de imagens.

Ontem, recebemos gentilmente do presidente, administrador e um dos accionistas da agência onde trabalho, uma caixa de madeira cheia, sobrecarregada de cerejas. Eu nunca tinha provado uma na vida. Não porque nunca me tivessem oferecido, mas porque eu dizia rapidamente: Não, obrigada, só gosto de uvas. E não, nunca tinha provado. O Paulo, director estratégico e amigo, obrigou-me a provar uma. Obrigou-me mesmo. A princípio a minha cara distorceu-se ferozmente, os olhos trocaram de lugar e a boca sofreu um espasmo interessante, mas como disse Fernando Pessoa a propósito da Coca-Cola (isto é quase uma obsessão), primeiro estranha-se, depois entranha-se. Lá gostei da cereja.

A caminho de casa, levava pelo Chiado a caixa com as cerejas quando ouvi um polícia a comentar que já era a terceira pessoa que via a descer a rua com cerejas e que devíamos estar a comprar em algum lado. Não resisti e satisfiz-lhe a curiosidade: deram-nos no trabalho, foram oferta. – E dei cabo da minha vida quando, sendo mais forte que eu, lhe disse: Quer uma? – Ele aceitou e agradeceu. Eu afastei-me e ouvi-o a comentar para o amigo, que era diabético e por isso recusou a cereja: A terceira pessoa a descer com cerejas, mas a primeira a oferecer. Simpática a miúda.
Ouviram coleguinhas?

Pois é, entrei num caminho sem saída. Depois de ter oferecido a primeira cereja e vendo-me com uma caixa cheia delas, comecei a sentir a pavorosa vontade de oferecer a toda a gente. Dei umas quantas ao senhor que está perto do metro a pedir, todos os dias de manhã e às vezes a esta hora. Depois, estava parada já dentro da estação da Baixa-Chiado (estação terminal, façam o favor de abandonar a carruagem), quando um rapaz começou a babar-se, também compulsivamente, a olhar para a minha caixa de cerejas. Eu, sem me conseguir conter mais uma vez, ofereci-lhe uma. Ele não aceitou. Continuou a babar-se.

Entrei no metro. Sentei-me a um cantinho e foi a minha sorte porque só consegui oferecer cerejas a 7 pessoas com o meu: Querem uma cereja? Podem tirar à vontade. – A princípio pensaram que eu tinha perdido a noção da realidade (a realidade do não se dá nada a ninguém, só se vende). Depois, pensaram que eu era muito má e qual bruxa má sem maçãs, tinha envenenado cada cereja e por isso estava a oferecer com um sorriso tão aberto. E eu com os braços estendidos e a caixa a pesar-me cada vez mais. Até que me devem ter olhado para os meus cabelos e qual Rapunzel já lhes pareci doce, e aceitaram. O senhor que estava sentado ao meu lado tirou duas, e parecia não estar saciado. Eu fiquei contente, por ele se sentir à vontade para tirar mais, e quando, nas Laranjeiras (era fixe se tivesse saído nas cerejeiras) ele se levantou das cadeiras cómodas do metro português e se preparava para ir embora, disse-me em voz baixa: Deus a abençoe pela sua liberalidade.

Quando cheguei a casa fui a correr para o dicionário. Liberalidade: s. f., qualidade do que é liberal; generosidade. Fui pesquisar o significado de liberal. Liberal: do Lat. Liberale, adj. 2 gén., próprio de homem livre; franco, generoso, amigo de dar. Sim, gostei. Sou uma cherry. ;)

Diz o ditado popular que as palavras, ou as conversas são como as cerejas: vêm umas atrás das outras. É bem verdade. Senti-me compelida a dar umas atrás de outras. Juro que tentei controlar-me. Mas não somos todos, um pouco ou muito, obsessivos-compulsivos?

16 Comments:

At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger Mandrake said...

Espectacular! Você é a maior! lol. Kiss

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger ? said...

muito delicioso o texto.

hoje fui almoçar ao chiado, estavam à venda cerejas, muitas... um monte delas. logo eu que adoro cerejas! que provocação.

não pude parar para comprar uma caixa: estava a almoçar com um tipo que é manda-chuva de uma empresa cliente. estou certo que ele acharia estranho...

mas gostei de saborear uma mão cheia de cerejas através das tuas palavras

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger Catarina Matos said...

Isto é um script de uma short-storie que dava um grande filme.

Lindíssima.

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger Catarina Matos said...

eu disse storie? Grassas a Deus.

Queria dizer um plural, porque esta seria a primeira de muitas short-stories. :)

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

Era uma vez um rapaz que não usava guarda-chuva. Não o fazia porque, apesar de até ser útil quando chove, é um objecto altamente desconfortável. Ou seja a não ser que se vá de uma casa para outra casa, o objecto fica molhado, molha tudo, não tem onde se colocar... resumindo é um peso morto. Esse mesmo rapaz dizia também que um dos bónus de ir ao cinema com uma rapariga é poder dizer "olha guarda-me isto na tua carteira, sim?", por isto leia-se: a carteira, as chaves, o telefone, o tabaco e o delicioso zippo. Porque convenhamos, as calças não foram feitas para carregar tanta tralha e andar com ela na mão pesa.
E um dia esse "rapaz" depara-se com uma "menina" que anda de caixa de cerejas pela rua fora... E não contente com esse feito hérculeo ainda se digna a espalhar sorrisos pelo mundo ao oferecer essas mesmas cerejas aos transeuntes. Quando, no expoente máximo da minha arrogância, penso que já vi tudo e que nada me espanta.. aparece uma caixa de cerejas e caio do cavalo.

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger Z said...

? Olá ;)
A todos os que passam por cerejas e compram-nas, um bem haja. ;) Na volta o manda-chuva da tal empresa teria gostado que tivesses comprado uma caixa, para ele poder tascar ;)
Beijinho.

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger Z said...

Grassas a Deus, Caty.
Olha, és dos cavalos?
Não bebas a água da torneira. É do gueto.

E tantas mais, que nos fazem rebolar de rir. Um beijo grande, e sim, deviamos era escrever argumentos.

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger Z said...

R. Curti muito o teu comentário e gostei do teu P.S.
Beijinhos.

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

Adorei a estória das cerejas! Eu adoro cerejas! Estou a comer neste momento cerejas (coincidencias do caraças!). Fogo, és mesmo generosa caramba, já não é a primeira vez que leio uma coisa tua deste género!

Espero que tenhas comido algumas, porque são mesmo deliciosas, então aquelas gordonas e escuras hmmmmmm.... e umas que já não como há muito tempo, quase brancas e tão docinhas hmmmmm que bom!

Gostei muito do comentário do R. Os meus pais "chateiam-me" constantemente por causa da chuva e de não usar nunca guarda-chuva. Claro está que em dias de muita chuva, chegam a casa e perguntam se me molhei, eu claro, nego sempre. :) Não gosto do chapéu-de-chuva porque me esqueço sempre dele em algum lugar, logo sai-me caro, outra razão é de não gostar de ter as mãos ocupadas ehehe. Claro está, às vezes lixo-me e fico bem encharcado, mas é raro... já tive que comprar umas calças porque fiquei com as que estava a usar coladas às pernas (típico burguês...)
Outra é a mala da rapariga... meu deus que faria uma pessoa sem a mala da sua rapariga :) parece que cabe lá tudo! incrível! se qualquer dia alguém sair de uma mala de rapariga, eu não me admiro.

desculpem este "coiso" ser tão longo.
Hugo

 
At sexta-feira, 19 maio, 2006, Blogger Z said...

Ehehe, Hugo, boa. Olha, comigo nunca terias essa surpresa, não gosto de usar bolsas. Arrumo tudo nos tenis-bota. :P Às vezes, quando tenho muitas coisas nas botas, arrasto-me, mas não uso bolsa. Beijinhos.

 
At sábado, 20 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

ok, as cerejas já foram comentadas o suficiente, o que me leva a falar de "pochetes". Nós, vulgos homens passamos sempre tudo, menos o telemovel, para a "sacola" das mulheres. Claro que se analisarem bem a coisa, fazemo-lo porque não estamos autorizados a ter uma "pochete", esse artigo tão utilizado pela malta da revolução dos cravos e pelo belo "fogareiro" para guardar os cromos da bola oferecidos na Galp e também qualquer papel, anotação, bilhete de metro e afins que lhe passe pelo caminho. Não, não podemos ter "pochetes". A sociadade feminina não nos aceita dessa forma, nós não nos aceitamos nesse perfil e provavelmente a minha mãe também não.
Eu gosto muito de cerejas e não gosto nada de "pochetes". Mas fazem-nos falta. Tanto como uma oferta de uma cereja a caminho de casa.

X X J
P.S. é verdade, bom post ;)

 
At domingo, 21 maio, 2006, Blogger Z said...

Gostei muito do pormenor da tua mão não aceitar, e do final do teu comentário. ;)
Já faziam falta, as tuas palavras aqui no blog. :P
XX, João.

 
At segunda-feira, 22 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

zofia esta estoria é veridica? nunca tinhas provado cerejas? ahah, olha que o caroço não se come :P

beijinhos, adorei a estoria, veridica ou fantasiada

 
At terça-feira, 23 maio, 2006, Blogger Z said...

Olá Franchesko, a estória é verídica. Eu sou mesmo assim :P Não há uma única cereja de fantasia. :) Beijinhos.

 
At sábado, 24 junho, 2006, Blogger [ momentos ] said...

imaginei o teu sorriso, daqueles incocentes e generosos, na tua caminhada para casa...
bonito.

 
At sábado, 24 junho, 2006, Blogger Z said...

:) [we].
Beijinho.

 

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