5.25.2006

Respiramos 24 mil vezes por dia


Sento-me num espacinho e cruzo as pernas. Penso se posso mantê-las assim, porque isso equivale a revelar as meias, e nem sempre as meias combinam com o resto da roupa. Descruzo as pernas, junto os joelhos e apoio os pés nas pontas dos dedos, guardados e amolgados dentro dos ténis. Senta-se uma senhora de uns 60 e poucos anos, mais ruga menos ruga, encharcada em perfume barato que escorre em gotas rechonchudas pelo colo. Sigo com os faróis dos meus olhos as lágrimas perfumadas que descem timidamente por entre os sulcos, e que acabam por manchar o decote em V da camisa preta com letras prateadas. Tento não respirar. Começo a pensar que esta mulher do decote e todas as mulheres e homens deste país que se sentam perto de mim, estão profundamente comprometidos na senda de poupar água. Para compensar, abusam dos frascos rumo à overdose. À minha overdose.

Vejo o metro como uma loja de perfumes. Sou constantemente canhoneada por cheiros que se misturam, provocando um efeito ainda mais derrubador. Inalo e exalo cada vez menos do ar conturbadamente perfumado e no intervalo automático descanso um pouco, para depois ser repetidamente atacada pelos perfumes que não são bem vindos. Maldigo a minha sorte. Difamo o metro. O início do dia. Quero morder as pessoas que usam perfumes. Apedrejo tudo.

Amuada, fecho os olhos e deixo de respirar. Escondo-me nesta cegueira imposta por mim, para folgar e abstrair-me de todos os olfactos e movimentos. De mal com a vida e com vontade de matar a velha, refugio-me no escuro até os meus pensamentos serem calados por sete batidas fortes em staccato. As sete pancadas sucessivas parecem aproximar-se e passo a ouvir a voz que as acompanha e que me faz abrir os olhos. Tenha a bondade de me auxiliar, por favor. – Diz o homem de óculos escuros, que lhe escurecem a paisagem sempre escura, com o braço esticado para a frente e a cabeça inclinada para trás, agarrando com a mão direita a bengala que o conduz.
Voltam as sete pancadas no chão, e eu sinto-me tão pequena que parece que caibo na palma da minha mão.

19 Comments:

At quinta-feira, 25 maio, 2006, Blogger JOÃO said...

big city life...

 
At quinta-feira, 25 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

Lindo,linda......no início parece que é uma história despreocupada de coisas gdes e quase no fim há um twist mt bom Zofs..........o final tá genial...!!!! sou teu fã.bjokas. qnd é q se combina uma surfada? nunca podes.....

 
At quinta-feira, 25 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

Por essas e por outras é que eu deixei de andar de transportes, meu querido carro :P mas ainda me lembro dessa frase, todos os dias, ida e volta "tenha a bondade de me auxiliar" é estupido pensar que se ignorarmos as situações elas se resolvem, mas não tenho culpa, andar de metro dava cabo de mim...

Mas agora vejo, o teu blog "ta.se" a tornar um local de flirt LOL...

"gostei muito do teu texto, tens namorado?" AHAHA

Beijinhos

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Blogger Sérgio Mak said...

O Metro é um circo com rodas, tens artistas, palhaços, mágicos que fazem desaparecer carteiras, gente que engole fogo (ou q tem um hálito q o comprova), música animação e reboliço e, por vezes, pessoas...

E, nós (repara na introdução de um sentimento de classe/clube restrito) somos espectadores, umas vezes fascinados, mais vezes enfastiados, mas sempre presentes diariamente...

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Blogger Z said...

O hi5 já não é o que era. O que está a dar agora são blogs :P
O João é meu amigo, e aquilo foi uma piada, Franchesko. ;) Mas queres perguntar alguma coisa, é? :P
Ahahahaha. Beijo, amigo.

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Blogger Z said...

Mak, amigo :) curti muito o que escreveste. É mesmo isso. Umas vezes fascinados, outras vezes enjoados...
Mágicos que fazem desaparecer carteiras, eheheh.
Gosto muito do teu humor. Beijo, mau.

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Blogger Mandrake said...

e desses 24 mil actos de respirar, quantos serão gastos a pensar em ti?!?

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

É delicioso como até na claustrofobia de ti mesma, encontras o espaço para te desacreditares de ser prisioneira. Da página. Do tempo. Da Vida. Fechando os olhos, pareces desviver o mundo que trazes de outras paisagens; porque aqui emergem sempre cores distintas, realidades desafinadas e os sonhos de quem deixa a paixão criar tudo o que nós não temos a coragem sequer de sonhar.

Longe do que não se fala, junto apenas do que se sente. Num instante fazes consumir e renascer o meu rosto marcado pelos olhares do mundo. E fazes-me também desviver desse outro alguém quando sonhas. Quando fechas os olhos, consigo respirar, sou livre.

Fecha de novo os olhos, Sofia. Só mais um instante.

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Blogger Z said...

(sl) Fecho, para poder ler coisas que me tocam.

Ando doida com os livros do Lobo Antunes. Às vezes leio frases que me fazem parar de andar. Sim, porque leio em movimento, no metro, por entre os perfumes. ;)

Tu escreves muito bem.
Longe do que não se fala e perto do que se sente? É isso mesmo.
Beijos.

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

Eu também gosto muito do Lobo Antunes, mas agora ando mais 'doido' com pequenos 'desenquadros' da vida, suspiros herdeiros de Alexandre O'Neill, como o teu blog ;)
E mails, também lês? :)
Beijo

 
At sexta-feira, 26 maio, 2006, Anonymous Anónimo said...

Ok Zofia, então o teu amigo que me perdoe :P

Se eu quero perguntar alguma coisa? Tenho tanta coisa para perguntar, aquelas perguntas existencialistas, do tipo de onde vens, para onde vais, o que fazes este fim de semana... AHAHAH

Mas tens razão, o hi5 já era, este blog está on FIRE ;)

Beijinhos Jacqueline (?!)

 
At sábado, 27 maio, 2006, Blogger travis said...

Eu leio o teu blog sempre, mas nem sempre há coisas para dizer
X

 
At segunda-feira, 29 maio, 2006, Blogger Z said...

:)

 
At quarta-feira, 14 junho, 2006, Anonymous Anónimo said...

ainda vais escrever muito quando encontrares o homem do chiwawa !

 
At quarta-feira, 14 junho, 2006, Blogger Z said...

Ahahahahaha. Sei perfeitamente de quem falas. E é horrivel apercebermo-nos de que sentimos mais pena do cachorrinho do que do puto.

 
At quarta-feira, 14 junho, 2006, Anonymous Anónimo said...

essa discussao da pena dava pano para mangas.
eu acho que esses personagens fazem parte da vida que o metro tem. para o bem ou para o mal, acho que sem eles o metro não seria a mesma coisa. também acho que talvez so diga isto porque raramente ando de metro.

 
At quinta-feira, 15 junho, 2006, Anonymous Anónimo said...

lol. acho q conheço esse cego. e os outros tb. como disse Oscar Wilde, 'resisto a tudo menos á tentação'. e a tentação da estação do parque leva-me a percorrer todas as outras estações. já experimentei fora das horas de ponta. só pelas estações. mas o som é diferente. os cheiros são diferentes. os empurrões são diferentes. as conversas para iniciar o dia á disputa do melhor tema são diferentes. no deserto humano de um metro na hora de ponta por vezes encontramos uma flor. e lá vem aquele sorriso

 
At terça-feira, 11 julho, 2006, Blogger Z said...

Beijinho grande, Snark. :)

 
At terça-feira, 11 julho, 2006, Blogger Z said...

Pescatore dil alaski ;)
Vou comprar um carro esperto.

 

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