2.08.2006

Capitulo 7 Cabinda, Angola

Ana entrou no Hotel Maiombe, que já tinha entrado na sua rotina. Faltavam agora apenas 2 horas para ir trabalhar. Em vez de se dirigir ao balcão, como sempre fazia para pedir uma Coca-Cola, sentou-se numa cadeira de madeira pouco equilibrada. Um pouco como que prevendo a sua vida, a cadeira ia se equilibrando. Um pouco para a direita. Depois um pouco para a esquerda. Lá ia mantendo o equilíbrio. Ele observava-a. Ajeitou a camisa, quando se sentou e desapertou dois dos botões da blusa fina, para deixar o pescoço respirar. Rasgou um pedacinho de um guardanapo que não tinha sido usado e dobrou-o duas vezes. Os olhos dele acompanharam as dobragens com atenção. Ela baixou-se para colocá-lo debaixo do pé da cadeira. A mesa estava cheia de pratos, copos, que ainda não tinham sido levantados e que lhe roubavam o espaço para colocar os cotovelos. Ela mexia nas pontas do cabelo e nos botões vermelhos, numa tentativa estéril de ocupar as mãos. Acendeu um cigarro. Do outro lado da sala, ele, sentado numa outra mesa que dividia com um outro militar.

Mas recuemos um pouco. A primeira vez que o viu tinha sido uma semana atrás, quando ele, no mesmo café do mesmo hotel, lhe perguntou se estava a chover.
As pessoas falam sobre o tempo por tantos motivos. Serve para cortar o silêncio num elevador. Numa sala de estar enquanto se espera por não sei quem, que chegue de não sei de onde. Serve de assunto interessante a quem não tem assunto ou de paisagem num poema choroso em que a chuva e a trovoada encerram em si não sei quantas significações. Mas o tempo é normalmente abusado para servir de desculpa para um atraso. Afinal, a chuva altera sempre o nosso percurso. Pára-nos, enquanto esperamos que passe. Ou adianta-nos, quando corremos para a evitar. Seja como for, o nosso caminho é sempre diferente do que tínhamos calculado. E aí cada impedimento, e cada adiantamento desempenha o seu papel na nossa vida. Se a chuva naquela tarde não se tivesse precipitado, ela não teria entrado naquele momento no Hotel Maiombe, encharcada.
Tantas abordagens imagináveis e ele perguntou-lhe se estava a chover. Nesse dia, a caminho do trabalho, o céu choveu sem pedir permissão. As pessoas aguardavam encostadas às casas, nas ombreiras de portas, à espera que passasse. Uns corriam nos passeios, ou nas estradas. Outros mantinham o passo. Duas velhinhas acompanhavam-se no passeio batendo constantemente uma na outra com os enormes guarda-sóis com estampados floridos que faziam o que podiam para as proteger da chuva. Ainda chovia quando a Ana entrou no café do Hotel para se esconder da chuva. O cabelo que descia até à cintura estava ensopado e ela, com as duas mãos e inclinando a cabeça para cima do ombro direito, torcia-o, apertava-o, expulsando dele a água da chuva. A camisa branca alagada tornara-se transparente e revelava o biquíni que trazia sempre vestido. Dois triângulos azuis.
Espremia o cabelo quando foi interrompida. «Desculpe, mas podia dizer-me se está a chover?». Não sendo certamente estúpido, estaria a intrometer-se. Trazia um camuflado velho e sujo, mas parecia apresentar-se a ela de fraque. Distinto, pensou. Ana olhou para ele. O cabelo escuro e desarranjado revelava-se por debaixo do quico. Calçava umas botas quase estragadas, enlameadas, provavelmente as únicas que usava. Era Alferes. Seria amigo do Vítor? O persistente Vítor continuava a tentar circundar a Ana, sem sucesso. Lia-lhe apaixonadamente poemas seus e dedicados a ela, debaixo da mulemba centenária que cobria totalmente o monumento do tratado de Simulambuco, através do qual as autoridades de Cabinda e do Maiombe se colocavam sob a protecção de Portugal contra os corsários ingleses. Uma árvore linda, e que se assemelhava a um guarda-sol gigante. Ana sentiu-se atravessada pelos olhos rasgados e escuros do militar que queria saber se estava a chover. Ela percorreu-o discreta e rapidamente de cima abaixo. E de baixo a cima. Podia ter-lhe dito mil e duas coisas, menos falar-lhe do tempo. Num segundo pensamento, talvez mais profundo perguntar se estava a chover quando ela chega encharcada da rua, não deixa de revelar um curioso sentido de humor inteligente. Roça o ridículo. Mas roça a arte. Se o propósito do militar era estrear uma conversa com uma civil, por que não fazê-lo do modo mais claro e directo? Se o móbil era a troca de palavras, e apenas a troca de palavras, porque não manifestá-lo de forma aberta? E simplesmente? Espantoso como a linha que divide o ridículo do brilhante pode ser tão débil. Como uma folha de uma árvore que empurrada pelo vento da copa ao chão pode cair simplesmente na relva, verde, ou um pouco mais à direita numa poça de água, suja. Pode ser refulgente ou grotesca. Tão delicada é essa separação. Se está a chover? «O que é que lhe parece?». Ele sorriu porque mesmo sem a conhecer, não esperava outra resposta. Ela passou por ele, sacudindo com as duas palmas das mãos a blusa e as bermudas, foi até ao balcão e pediu uma Coca-Cola.

Mas voltemos àquele dia 22 de Novembro. Faltavam então 2 horas para ir trabalhar. Sentada na tal cadeira de madeira, que mesmo com o papel dobrado duas vezes não se equilibrava, acendeu um cigarro. Do outro lado da sala, ele, com quem tinha trocado duas frases encharcadas, uma semana antes.
Estava sentada pouco confortavelmente. O cigarro, preso entre os dois dedos da mão direita, e com a mão esquerda entretinha-se com o ondulado do cabelo. A primeira vez que levou um cigarro à boca tinha 12 anos. Trancou-se na casa de banho de casa, no Lobito, e insistiu em perceber o motivo dos adultos gostavam tanto daquilo. Tinha de ser muito bom. Antes da refeição. Depois da refeição. A meio da refeição. E «nada como um cigarro durante o café»? E como uma chantagem? Será que se podia obrigar alguém a casar com outra pessoa com a promessa de um cigarro? «Casa comigo», «Só se me deres um cigarro». Lembro-me de ser pequena, de ter uns 9 ou 10 anos, e de ver a minha mãe na sala, sozinha no escuro da sala, quando me levantava a meio da noite e ia à cozinha beber um copo de água. Em Nova Lisboa não via da janela os mangais, nem o mar. Da sala, via-se a rua, com as suas elegantes casas de bonecas, os jardins arranjados e os muros baixinhos. Lembro-me da sala escura estar apenas iluminada pelo cigarro aceso. A andar de um lado para o outro. Em círculos constantes e previsíveis. Como uma mosca que não sabe porque é que está ali. De onde vem ou tampouco para onde vai. Naquela época a minha mãe tinha acabado de se divorciar do meu pai. Eu acordava com o calor ou com pesadelos e andava com passos apressados pelo corredor comprido e escuro até passar pelo quarto dela. A cama vazia. Seguia para a sala com a certeza de que a encontraria lá. Como a mosca. E na madrugada juntava-me a ela, sem me fazer notar. Sentava-me silenciosamente com os meus braços a envolverem as minhas pernas e os pés muito juntos. Como se me sentisse segura assim. Os meus pés não iriam a nenhum lado sem mim. Os dois pés. Comigo. E se um abria a escorregar, puxava-o de uma só vez para mim. Não consegui apertar o meu pai. E ele escapou-se de mim. Sentava-me a observá-la de um lado para o outro. Não a culpo pelo meu vício. E adormecia no sofá enquanto acompanhava com os olhos a dança luminosa que me hipnotizava.

1 Comments:

At domingo, 12 fevereiro, 2006, Anonymous Anónimo said...

...muito fixe....a história vai continuar?é q agora quero saber o resto..bjs

 

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