10.13.2005

Brincando de jornalista

Só existe uma coisa mais terrível do que uma guerra. Fazer de conta que ela nunca existiu.

Uma hora com os Ex-Alferes Milicianos Raúl dos Reis Ramalho e Joaquim francisco Couceiro Ferreira. Os testemunhos de dois dos homens que fizeram parte dos combatentes da guerra do Ultramar de 1961-1975.

Cresceram juntos e juntos escolhiam namoradas. Enviados separadamente para diferentes batalhões de combate, reencontraram-se após a descolonização. Raúl dos Reis Ramalho, 57 anos, Médico, Estomatologista e Cirurgião Maxilo-Facial, combateu no Chimbete, floresta do Maiombe, no enclave de Cabinda, em Angola. Posteriormente foi colocado em Nambuangongo, no norte de Angola, de 1970 a 1972. Joaquim Francisco Couceiro Ferreira, 57 anos, bancário e Coronel reformado, combateu na companhia de Atiradores de Artilharia 2718, em Moçambique. Na hora da conversa, relembraram as histórias que cada um guarda e não esquece, as experiências de dois homens rodeados de arame farpado e mata cerrada a cuja beleza as vicissitudes da guerra os tornava indiferentes.
Entre 1961 e 1975 centenas de milhares de jovens portugueses foram embarcados para os territórios da Guiné, Angola e Moçambique. Naquela altura, Reis Ramalho tinha 20 anos e era um idealista. Quando foi mobilizado para o Ultramar encarou a situação com naturalidade. Sentia ser o meu dever defender os interesses dos portugueses e de Portugal em África, afirma com convicção. Couceiro Ferreira sentia de maneira diferente. Na impossibilidade de evitar a mobilização só restava assumir a presença na guerra, na esperança do regresso a salvo.
Na mata verde-cinzenta por onde andaram, uns mataram e viram morrer. A guerra é isto, nada faz sentido. Reis Ramalho comenta é uma vida que se interrompe e continua, com o assentimento de Couceiro que o ouvia em silêncio, que a convivência diária com a morte lhes trazia um vazio enorme. A dor é grande, concordam ambos.
Uma das muitas ameaças durante a guerra eram as bombas colocadas e comandadas à distância. E o medo da incapacidade física era grande, exclamam quase em uníssono. Eram tomadas as precauções necessárias nos trilhos em que picavam o terreno minuciosamente e faziam avançar o carro, preparado como rebenta-minas. Todos os cuidados eram poucos. Uma mina anti-pessoal chegou a rebentar nas mãos de Couceiro Ferreira, o que lhe custou a interrupção do tempo de guerra e a cegueira do olho esquerdo. Mas, interrompe Couceiro Ferreira, éramos muito jovens, com a força mental capaz de enfrentar os maiores desafios. No entanto, nem todos tinham a mesma capacidade de superação, a mesma força, e as provações às quais eram constantemente sujeitos, faziam-nos ir vivendo permanente em extrema ansiedade. Muitos tiveram que recorrer a apoio psiquiátrico, acusa.
Durante o tempo em que combateram e o que mais os chocou, foi a frieza com que eram assumidas algumas atitudes, impensáveis noutras circunstâncias, comentam. Surge a pergunta de que se conheceriam algum caso de um combatente que tenha violado uma mulher nativa. A resposta é curta e esclarecedora Sim, confessa Couceiro Ferreira.
Estima-se que cerca de 35 mil veteranos reclamem a efectivação da contagem do tempo de serviço no Ultramar para efeitos de cálculos das pensões de reforma, a aposentação aos 55 anos, a criação da Rede Nacional de apoio aos ex-militares afectados por stress pós-traumático de guerra e medicamentos gratuitos nos hospitais militares. Foi lhes perguntado se estariam ou não de acordo com esta reclamação, e ouviram-se alto as respostas sem a mínima hesitação Totalmente a favor e A favor, claro. Está provado que os homens que estiveram no Ultramar ou noutro cenário de guerra têm em média menos dez anos de vida em relação a um indivíduo que nunca foi submetido a tal provação, segue Reis Ramalho e observa, com pesar, o stress pós-traumático de guerra é uma realidade. Couceiro Ferreia acrescenta, anuindo, foi catalogado como doença recentemente e definitivamente, pelos americanos na sequência da guerra do Vietname, informa.
No monumento aos Combatentes do Ultramar, na guerra de 1961 a 1975 não estão gravados os nomes dos que morreram em combate. Dois amigos, opiniões divergentes. Ramalho considera que a situação do soldado anónimo em nada desmerece os que padeceram durante a guerra. Muitos militares que não morreram também o mereceriam, afirma, e deixa ainda uma pergunta no ar Quantos inválidos físicos, quantos não já se suicidaram pelo que não conseguiram esquecer, e todos os outros que voltaram da guerra depois de terem lutado por Portugal? Também estes deveriam ter, na sua opinião, e então, o seu nome gravado no monumento. Couceiro Ferreira aproveita o espaço para censurar Só existe uma coisa mais terrível do que uma guerra: fazer de conta que ela nunca existiu.
Cada momento vivido fora das operações era aproveitado na tentativa de esquecer o ambiente hostil em que viviam. Com o intuito de abafar a ansiedade que as situações de combate provocavam, jogavam futebol, cartas, conversavam. Tentavam alhear-se, ainda que por breves momentos, da guerra.
Entre risos e olhares divertidos, agora diferentes, comandados pela sucessão de lembranças, ambos sustentam que imensos episódios curiosos e divertidos aconteciam. Couceiro Ferreira recorda um em particular: Os médicos que faziam serviço nas companhias não tinham preparação operacional. Desta forma, era fácil enganá-los. Um dia, dentro do aquartelamento e após o almoço, simulamos estar a preparar granadas para uma operação e distraídamente deixamos cair uma, pronta a rebentar, no colo do médico. Foi vê-lo aos berros, tentando proteger-se atrás dum móvel do eminente rebentamento. Como se o móvel o pudesse proteger!, abana a cabeça reprovando a ingenuidade do médico. Claro que a granada estava desactivada, observa entre risos.
Aquando perguntado se recebera alguma condecoração, Couceiro responde Assumi sempre as atitudes que julguei necessárias à defesa da integridade dos homens que me acompanhavam e acrescenta que nunca tive preocupações desse tipo. Após uma pausa, talvez passando em revista os quase dois anos de comissão cumpridos, sublinha Não fiz mais do que aquilo que eles de mim esperavam.
Tempos de angústia e dor. Consternação. Incerteza. Provação atrás de provação. Sem tempo para se ter medo. Saudade e raiva. A guerra é isto, nada faz sentido, conclui Reis Ramalho. Começa com disparos e acaba com as lágrimas de um soldado.