3.03.2008

Este texto é para ti, Susana

Ela é um ano e dois meses mais velha do que eu. Eu tinha 4 anos quando nós nos conhecemos. Ela tinha o cabelo pela cintura, castanho e liso. Eu tinha o cabelo pelos ombros, normalmente separado em duas partes com dois totós vermelhos. Conhecemo-nos debaixo da mesa da cozinha, que ficava encostada a uma parede com azulejos azuis, e onde eu passava muito tempo porque gostava da sensação de ter um tecto por cima, e no qual pudesse tocar.
Tinha acabado de chegar de Faro, onde morei dos dois aos quatro anos, e fixámo-nos em Lisboa. Eu passei a morar no 3º C, na casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela morava no 1º C e era filha da porteira. Chamava-se Susana Isabel da Silva Amaral e tinha primos com piolhos. Eu não gostava do Benfica porque o pai da Susana não a deixava brincar comigo, dizia a tudo que não quando o Benfica perdia. E o Benfica perdia muitas vezes. Eu não gostava dos primos dela que tinham piolhos. Volta e meia ela era levada pelos pais para a terra que se chamava Viseu para ir ao aniversário de um dos 15 primos que tinham piolhos.
Eu tive piolhos. Agora sei que os piolhos são insectos sem asas, de cor escura, pequenos, que se alimentam exclusivamente de sangue humano. Agora sei que os ovos dos piolhos são endurecidos e de cor branca tipo pérola e são chamados de lêndeas. São depositadas nos fios de cabelo, próximos do couro cabeludo, e deles nascem as ninfas que quando adultas depositam cerca de 80 ovos antes de morrer. Quando eu tinha 4 anos, as lêndeas não eram outra coisa senão os filhotes irrequietos dos piolhos, que gostavam muito de viajar, saltando facilmente de cabeça em cabeça. Nunca me importei de ter piolhos. Aliás, até gostava da extra atenção da minha mãe quando me revistava o couro cabeludo. Às vezes, e isto nunca lhe confessei, fingia ter comichão aqui e ali.
A Susana estava sempre presente. Lembro-me de brincar com ela e com os meus irmãos com legos e carrinhos. De nos construírem uma casa feita de lençóis na sala, presos por molas. Tendas anexadas a tendas. De nos sentarmos quietas e ansiosas pelo espectáculo de fantoches no beliche dos meus irmãos. De chorar desalmadamente quando o meu irmão Pedro incorporando o papel de cowboy maldito queimava os meus índios, depois de atados a paus e rodados sobre uma fogueira, tal espeto de javali grelhado sobre brasas. E da Susana deliciar-se a ver-nos a brincar, porque dizia que preferia ver do que estragar alguma coisa. Lembro-me do meu irmão Bruno me torturar com cócegas quando me ia buscar à escola primária nº 2 da Pontinha. Lembro-me da Susana ter contado à minha avó que o Marcos me tinha dado um beijinho na boca, e de eu ter sido obrigada a lavar os dentes, os lábios e a língua com sabão azul e branco, quando o beijinho na boca fora na verdade um leve e tímido encostar de lábios muito juntos e esticados. Lembro-me de lhe contar estórias inventadas à pressão só para a distrair, porque ela estava triste. Lembro-me dela ser canhota e eu achar muita piada. E de com as nossas mãos termos feito um carro viajar até ao futuro, passando com o carrinho perto da rota de fios de algodão ensopados em álcool, e depois incendiados pelo meu irmão quase pirómano. Lembro-me de querer ser bombeira. E ela polícia. Lembro-me de partilhar todos os meus brinquedos com ela. De andar de bicicleta à volta do quarteirão, por turnos. Primeiro ela. Depois eu. Depois ela. Depois eu. E o meu Pai e os meus irmãos correrem atrás para que se caíssemos fossemos agarradas. Lembro-me dela a tapar a boca com as duas mãos, de ficar vermelha e parecer que podia explodir a qualquer segundo, e de me implorar que eu parasse de contar piadas porque ela não conseguia respirar se se risse assim tanto. Lembro-me de lavarmos as duas as roupinhas das nossas bonecas no tanque. Em dois tanques pequenos, feitos ao nosso tamanho, e que a minha mãe comprou para nós. Lembro-me de nos esticarmos para pendurar as roupas nos varais do 1º C. Lembro-me de ficarmos as duas na varanda do 3º C a olhar para o prédio alto e cheio de janelas iluminadas que ficava depois do descampado, onde eu costumava colher flores com a minha avó. E eu dizia-lhe frequentemente que eu ainda havia de morar naquele prédio de reis e rainhas, quando fosse crescida. E que a levava comigo. Lembro-me de lhe dizer, agora eras a policia e eu era o ladrão e tu tentavas prender-me porque eu tinha roubado as maçãs da mercearia do senhor Mário e da senhora Odete. Ela sempre quis ser polícia. Eu sempre quis ser um ladrão.
Lembro-me de tanta coisa. De a ter convencido a brincar às cabeleireiras na sala da casa da minha avó que sempre tratei por mãe. Ela, com a voz fina e instável de 5 anos, perguntava-me pela terceira vez, ó Sofia, não vais cortar a sério, pois não? E eu dizia-lhe, fica descansada que a tesoura é de brincar. Mas vira-te para a frente. Vira-te para a frente senão não brinco mais contigo. E ela virava-se para a frente. E eu cortar-lhe-ia o cabelo pelas orelhas. E ela agradecer-me-ia, porque assim ficava mais bonita. Sempre tive a certeza de que se eu lhe dissesse, faz isto, faz aquilo, senão nunca mais sou tua amiga, ela fazia. Uma amizade assim nunca mais tive.
Agora moro no 1º B desse prédio que não tem reis nem rainhas, a senhora Odete morreu com um cancro, tu moras em Viseu e trabalhas numa fábrica de material de automóvel. Mas eu, quando vou visitar a minha avó, continuo a olhar da varanda do 3º C para baixo, e procuro no varal as roupas das nossas bonecas penduradas. E por vezes, quando volto para minha casa, engano-me e vou bater ao 1º C. Vamos andar de bicicleta. Vamos vestir e pentear as bonecas. Vamos brincar com plasticinas. Vamos cantar ao microfone. Vem brincar comigo, Susana, senão nunca mais sou tua amiga.

3.01.2008

Hoje quase sorri.


Os últimos meses têm sido bons, tenho quase sorrido. Mas incomodam-me esses quase. O que quase ganhou ainda pode perder porque ainda joga. O que quase partiu mas que continua no mesmo lugar. Se calhar sou cobarde. Podia decidir de uma vez por todas entre a alegria ou a tristeza. Mas esta vida a meio gás, o tempo que não passa nem depressa nem devagar, tem-me prisioneira. Gosto de pensar que não pertenço a lado nenhum. Que não tenho raízes. Que não tenho família nem amigos de infância que sabem qual era o meu jogo preferido, ou que se lembram das fitas que fazia quando era pequena. Gosto de pensar que não tenho passado. Nasci aqui em Lisboa e nasci com 30 anos. Aparentemente não sou casada porque vivo num quarto arrendado bem perto do café A Brasileira. Aparentemente também não tenho amigos porque sou muito solitária. Tenho as minhas rotinas e elas são cheias de nada ou de ninguém. Não vou tomar café com amigos, não tenho encontros com rapazes. Ninguém me conhece e eu não conheço o meu passado. Gosto de pensar que posso pegar na mochila e colocar lá dentro a única coisa que me interessa guardar. Aquela fotografia. Daquele momento que não recordo porque nasci com 30 anos. Daquele momento que não vivi porque apaguei de mim todas as memórias. Porque não me lembro. Não me lembro do que fiz, do que fizeste, do que eu fiz porque fizeste. Ou porque fiz o que tinha a fazer. Não me lembro, ou não me recordo, ou esforço-me para não me lembrar. Não te deixes errar outra vez, digo-me a mim própria. Ainda vou a tempo. Ainda vou a tempo porque ainda me lembro da última vez que sorri.