2.21.2006

Brilhas

Lá bem no canto do teu olho vejo uma gota que cai docemente.
Desprezo a tua pupila e acompanho a tua dor que me prende o olhar.
Sobre a minha cara a tua água fez-se torrente.

Em pequenas lâminas sinto o meu corpo alagar-se em riscos.
Os mesmos que desciam dos teus olhos há segundos atrás.

É no escuro que mais te vejo a brilhar.
É no encoberto que os teus contornos mais se anunciam.
E o brilho canalizado pelos faróis do teu rosto parte de ti iluminando todos.

Dizes-me calada que posso ficar.
E no teu porto dá-se o nascimento do meu brilho.

Nas margens do teu rio a minha dor afoga-se.
E toda a dor do mundo se apaga no brilho de duas espadas que unidas se perdoam.

2.17.2006

Engravidei

Desde pequena que me assustavam dizendo que as maiores dores físicas que uma mulher podia ter, eram as dores de parto.
Resolvi o problema: Sonhei que tinha dado à luz moscas. Eram cinco mosquinhas lindas. Como eram recém-nascidas ainda não tinham asas, naturalmente não conseguiam voar. Eram muito activas e dado que saíram de mim, presumi que saíssem à mãe. Mas os meus irmãos mais velhos não lidaram muito bem com o facto de serem tios de moscas. A primeira palavra dos sobrinhos também os preocupada. Zzzz, o que significaria? Como iriam comunicar com as mosquinhas? Mas valia matá-las, pensaram. Tentavam desenfreadamente pisá-las. E eu, passei o resto do sonho a guardá-las com as mãos e a tentar que elas não se afastassem umas das outras. Ia dando leves toques de um lado e de outro, tentanto direccioná-las sem as esmagar. Afinal, eram minhas filhas e o amor de uma mãe, ainda que de moscas, é incondicional.

2.14.2006

O Dia dos Namorados deve ser todos os dias


Agora, essa pressaozinha de levar a jantar, oferecer flores mesmo quando não se é indiano, e provar um vinho diferente no restaurante onde estão mais dois mil casais de mãos dadas suadas com rosas e rosas a descansar em cima de cada uma das mesas para duas pessoas, e apenas separados momentaneamente por uma vela invejosa em forma de coração cortada pela metade, ai. Ui.
Por outro lado quem viva essa experiência, que a viva. Eu quero é que todos sejam felizes. :) De forma kitsch ou não.
Acima de tudo, o amor. Seja de filme, de revista ou real. Seja imaginário, copiado ou inventado. Desde que essas pessoas pensem que o vivem, acabam por senti-lo.
Ai kitsch, kitsch... as coisas que tu nos fazes. Fazes-nos vir as lágrimas aos olhos, duas, uma a cair de cada olho comovido, e uma gota logo a seguir à outra, quando vemos dois casais num jardim debaixo de uma árvore cheia de raízes à superfície a darem um beijo ao pôr-do-sol. E ele, que tinha o ramo de flores escondido atrás das costas, num gesto de amor intempestivo revela o ramo de rosas à menina, que ainda segura uma das pernas no ar dobrada e levantada com o beijo do namorado e diz: Feliz dia dos Namorados.
E nós dizemos: que coisa bonita, um casal de namorados enamorados. E mais, comovemo-nos todos com a mesma imagem, e aí sim o Kitsch ganhou. As imagens-chave do nosso imaginário ganharam.
Como foi o vosso dia dos Namorados?

Nunca tive as tuas palavras


Olho para as letras que desenhaste num papel como se examinasse a anatomia do teu corpo.
Cinco letras que nunca cheguei a ouvir porque até esta preferiste não dizer.
Nunca tive as tuas palavras. Essas tuas palavras sussurradas ou gritadas. Nunca as ouvi.
O ar que passava por entre os teus dentes rectos e pela tua língua determinada e que me trariam documentos preciosos, nunca passou. Sentimentos teus em palavras que não deitas ao vento e por isso nunca foram espalhadas para mim.
Apenas te tive, deitada em mim. Calada.

Adeus. Adeus.

Agora leio a palavra que nunca quis ouvir de ti. Nem isso me deste de ti. E caminho nas ruas que passam por mim porque a tua palavra aprisiona os meus olhos a ti, enquanto me liberta, triste de mim.
Palavra, que nem em sonhos sonhei. Serei um pouco do nada. Um corpo que vagueia no desassossego arrastando os pés pela estrada com medo do teu ponto final. Com receio da tua caligrafia, vazia de nós. Um corpo desabitado que passeia com um papel preso entre as mãos assustadas e que me dificultam a tua leitura. Porque não te quero ler.
Tive-te antes de te ler que te perdi.
E nestas esquinas perco-me sem ti. Só com a tua palavra última.

Adeus. Adeus.

Palavra, que me sinto nu. De ti. E essa tua palavra soa-me a um pouco do nada.
Palavra, que me traz sentimentos vazios de amor. Vazios de mim.
Porque sem ti sou um pouco do nada.
Palavra, que me trouxeste repouso.
Deixaste-me sozinho com uma palavra, que eu queria invisível.
Que eu queria calada.
Sem leitura.
Pobre destinatário de mim, desertado por ti.

Adeus. Adeus.

Sou poeira ou apenas uma folha desolada no vento da madrugada.
E de ti, levo um pouco do nada.

2.08.2006

Estou ansiosa pelo Verao

Já o meu amigo Filipe Lagosta evita ir à praia nas horas de maior calor.

Be better



Nunca é tarde para sermos o que sempre quisemos ter sido. :)

Finalmente

Eu acabei de lamber o meu cotovelo direito.
Andei 24 anos a tentar. Finalmente.
Só é um bocado chato agora ter o braço partido.

Pensar grande

Ainda que os meus passos sejam vistos pelos outros como inúteis, eu sei que vou deixando pegadas pelo caminho. Vou marcando as árvores à medida que passo por elas. Vou deixando também migalhas mas nem penso em voltar atrás. E não me assusta arriscar. Não tenho pânico de corredores compridos e escuros. Até porque depois de eu provar uma laranja tão doce, não me posso contentar com apenas metade. Vou espremê-la até ao fim. Se a última gota for amarga, será apenas um dissabor. Porque eu não tenho medo de saltar. De correr, apanhar balanço e saltar. Não posso transpor um abismo com passinhos de bebé.

Capitulo 7 Cabinda, Angola

Ana entrou no Hotel Maiombe, que já tinha entrado na sua rotina. Faltavam agora apenas 2 horas para ir trabalhar. Em vez de se dirigir ao balcão, como sempre fazia para pedir uma Coca-Cola, sentou-se numa cadeira de madeira pouco equilibrada. Um pouco como que prevendo a sua vida, a cadeira ia se equilibrando. Um pouco para a direita. Depois um pouco para a esquerda. Lá ia mantendo o equilíbrio. Ele observava-a. Ajeitou a camisa, quando se sentou e desapertou dois dos botões da blusa fina, para deixar o pescoço respirar. Rasgou um pedacinho de um guardanapo que não tinha sido usado e dobrou-o duas vezes. Os olhos dele acompanharam as dobragens com atenção. Ela baixou-se para colocá-lo debaixo do pé da cadeira. A mesa estava cheia de pratos, copos, que ainda não tinham sido levantados e que lhe roubavam o espaço para colocar os cotovelos. Ela mexia nas pontas do cabelo e nos botões vermelhos, numa tentativa estéril de ocupar as mãos. Acendeu um cigarro. Do outro lado da sala, ele, sentado numa outra mesa que dividia com um outro militar.

Mas recuemos um pouco. A primeira vez que o viu tinha sido uma semana atrás, quando ele, no mesmo café do mesmo hotel, lhe perguntou se estava a chover.
As pessoas falam sobre o tempo por tantos motivos. Serve para cortar o silêncio num elevador. Numa sala de estar enquanto se espera por não sei quem, que chegue de não sei de onde. Serve de assunto interessante a quem não tem assunto ou de paisagem num poema choroso em que a chuva e a trovoada encerram em si não sei quantas significações. Mas o tempo é normalmente abusado para servir de desculpa para um atraso. Afinal, a chuva altera sempre o nosso percurso. Pára-nos, enquanto esperamos que passe. Ou adianta-nos, quando corremos para a evitar. Seja como for, o nosso caminho é sempre diferente do que tínhamos calculado. E aí cada impedimento, e cada adiantamento desempenha o seu papel na nossa vida. Se a chuva naquela tarde não se tivesse precipitado, ela não teria entrado naquele momento no Hotel Maiombe, encharcada.
Tantas abordagens imagináveis e ele perguntou-lhe se estava a chover. Nesse dia, a caminho do trabalho, o céu choveu sem pedir permissão. As pessoas aguardavam encostadas às casas, nas ombreiras de portas, à espera que passasse. Uns corriam nos passeios, ou nas estradas. Outros mantinham o passo. Duas velhinhas acompanhavam-se no passeio batendo constantemente uma na outra com os enormes guarda-sóis com estampados floridos que faziam o que podiam para as proteger da chuva. Ainda chovia quando a Ana entrou no café do Hotel para se esconder da chuva. O cabelo que descia até à cintura estava ensopado e ela, com as duas mãos e inclinando a cabeça para cima do ombro direito, torcia-o, apertava-o, expulsando dele a água da chuva. A camisa branca alagada tornara-se transparente e revelava o biquíni que trazia sempre vestido. Dois triângulos azuis.
Espremia o cabelo quando foi interrompida. «Desculpe, mas podia dizer-me se está a chover?». Não sendo certamente estúpido, estaria a intrometer-se. Trazia um camuflado velho e sujo, mas parecia apresentar-se a ela de fraque. Distinto, pensou. Ana olhou para ele. O cabelo escuro e desarranjado revelava-se por debaixo do quico. Calçava umas botas quase estragadas, enlameadas, provavelmente as únicas que usava. Era Alferes. Seria amigo do Vítor? O persistente Vítor continuava a tentar circundar a Ana, sem sucesso. Lia-lhe apaixonadamente poemas seus e dedicados a ela, debaixo da mulemba centenária que cobria totalmente o monumento do tratado de Simulambuco, através do qual as autoridades de Cabinda e do Maiombe se colocavam sob a protecção de Portugal contra os corsários ingleses. Uma árvore linda, e que se assemelhava a um guarda-sol gigante. Ana sentiu-se atravessada pelos olhos rasgados e escuros do militar que queria saber se estava a chover. Ela percorreu-o discreta e rapidamente de cima abaixo. E de baixo a cima. Podia ter-lhe dito mil e duas coisas, menos falar-lhe do tempo. Num segundo pensamento, talvez mais profundo perguntar se estava a chover quando ela chega encharcada da rua, não deixa de revelar um curioso sentido de humor inteligente. Roça o ridículo. Mas roça a arte. Se o propósito do militar era estrear uma conversa com uma civil, por que não fazê-lo do modo mais claro e directo? Se o móbil era a troca de palavras, e apenas a troca de palavras, porque não manifestá-lo de forma aberta? E simplesmente? Espantoso como a linha que divide o ridículo do brilhante pode ser tão débil. Como uma folha de uma árvore que empurrada pelo vento da copa ao chão pode cair simplesmente na relva, verde, ou um pouco mais à direita numa poça de água, suja. Pode ser refulgente ou grotesca. Tão delicada é essa separação. Se está a chover? «O que é que lhe parece?». Ele sorriu porque mesmo sem a conhecer, não esperava outra resposta. Ela passou por ele, sacudindo com as duas palmas das mãos a blusa e as bermudas, foi até ao balcão e pediu uma Coca-Cola.

Mas voltemos àquele dia 22 de Novembro. Faltavam então 2 horas para ir trabalhar. Sentada na tal cadeira de madeira, que mesmo com o papel dobrado duas vezes não se equilibrava, acendeu um cigarro. Do outro lado da sala, ele, com quem tinha trocado duas frases encharcadas, uma semana antes.
Estava sentada pouco confortavelmente. O cigarro, preso entre os dois dedos da mão direita, e com a mão esquerda entretinha-se com o ondulado do cabelo. A primeira vez que levou um cigarro à boca tinha 12 anos. Trancou-se na casa de banho de casa, no Lobito, e insistiu em perceber o motivo dos adultos gostavam tanto daquilo. Tinha de ser muito bom. Antes da refeição. Depois da refeição. A meio da refeição. E «nada como um cigarro durante o café»? E como uma chantagem? Será que se podia obrigar alguém a casar com outra pessoa com a promessa de um cigarro? «Casa comigo», «Só se me deres um cigarro». Lembro-me de ser pequena, de ter uns 9 ou 10 anos, e de ver a minha mãe na sala, sozinha no escuro da sala, quando me levantava a meio da noite e ia à cozinha beber um copo de água. Em Nova Lisboa não via da janela os mangais, nem o mar. Da sala, via-se a rua, com as suas elegantes casas de bonecas, os jardins arranjados e os muros baixinhos. Lembro-me da sala escura estar apenas iluminada pelo cigarro aceso. A andar de um lado para o outro. Em círculos constantes e previsíveis. Como uma mosca que não sabe porque é que está ali. De onde vem ou tampouco para onde vai. Naquela época a minha mãe tinha acabado de se divorciar do meu pai. Eu acordava com o calor ou com pesadelos e andava com passos apressados pelo corredor comprido e escuro até passar pelo quarto dela. A cama vazia. Seguia para a sala com a certeza de que a encontraria lá. Como a mosca. E na madrugada juntava-me a ela, sem me fazer notar. Sentava-me silenciosamente com os meus braços a envolverem as minhas pernas e os pés muito juntos. Como se me sentisse segura assim. Os meus pés não iriam a nenhum lado sem mim. Os dois pés. Comigo. E se um abria a escorregar, puxava-o de uma só vez para mim. Não consegui apertar o meu pai. E ele escapou-se de mim. Sentava-me a observá-la de um lado para o outro. Não a culpo pelo meu vício. E adormecia no sofá enquanto acompanhava com os olhos a dança luminosa que me hipnotizava.

2.06.2006

Quando eu morrer

Normalmente chegava poucos minutos antes das aulas e os meus passos pequenos e apressados percebiam-se pelo barulho que faziam nos degraus de pedra. Subi e desci aqueles dezoito ou dezanove degraus tantas vezes. Quando subimos assim tantos degraus e tão frequentemente, temos tempo para pensar em tudo. Uma vez pensei num cemitério. Pedras brancas e frias em cima da terra onde os nossos corpos e as nossas células perdem a memória e caem, deitadas, no eterno esquecimento. Não gosto que me brindem com flores. Oferecer flores, para quê? Lembram-me a morte. Recebemos a flor, para depois colocá-la no seu túmulo. Enchemos o jarro com água, como se quiséssemos prolongar o sofrimento da flor. Com um sorriso ingénuo espetamo-la no jarro onde ela irá em pouco tempo definhar. Prefiro contemplá-las num jardim fresco e florido, qual paraíso. Descia as escadas e pensava frequentemente que quando morresse não queria ser deitada num cemitério. Não queria flores. Não quero choros.

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E eu, tenho vindo a ser alvo dos piores nomes por ter estado em repouso estes últimos dias.
Já me chamaram Cátia Vanessa e Odília.
(Espaço para o leitor pensar nesta piadinha infame).
(Espaço para o leitor ser complacente com a autora do post).
Quando forem à praça comprar um bacalhau, que é seco e salgado, é necessário que depois o hidratem e o dessalguem.
(Voz de anúncio) Sabiam que o bacalhau pode ganhar até vinte por cento de peso se for correctamente dessalgado? Vejam como é simples dessalgar e aproveitar o melhor do peixe, fazendo-o render para que fique com um sabor excepcional:
Depois de cortar o bacalhau em posts, coloque-o submerso dentro de um vasilhame sob um fio de água por uns 10 minutos.
Eu inundei a cozinha porque me esqueci da torneira aberta a correr largamente.
Sim, chatearam-me por nunca mais ter escrito no blog.
Sim, acusaram-me de fazer render o peixe.